31 de julho de 2010

Ballaké Sissoko & Vincent Segal “Chamber Music”

Terá muito que se lhe diga encontrar num título a felicidade. E embora não se defina exactamente assim o que no império mandinga produziram os griô, só uma leitura inflexível deixaria de lhes reconhecer na acção semelhanças com a tradição da Música de Câmara. E porque tem hoje de lidar com a reprodução mecânica aquele que figurava socialmente como um conservador – Ablaye Cissoko chamou-lhes “as bibliotecas de África” – multiplicam-se, da electrificação em Ba Cissoko à revisão do be bop no Kora Jazz Trio, sinais de que também os bardos africanos exploram estilos pessoais para lá da ortodoxa sujeição à narrativa histórica. Ballaké Sissoko será, aliás, e a par de Toumani Diabaté e Djeli Moussa Diawara, dos mais empenhados em renovar a música mandinga com base na kora. Desde que com Diabaté gravou, em 1999, o paradigmático “New Ancient Strings”, surgiu com Kandia Kouyaté ou Bako Dagnon, lançou o fundamental “Déli” e partiu para uma série de colaborações que foram, frequentemente, parar ao lado errado da fusão (“Le Son de Soie”, com a chinesa Liu Fang, ou “Diario Mali”, com o italiano Ludovico Einaudi, são pastiches onde não se percebe quem copia o quê). Felizmente, saíram-lhe melhor as parcerias no projecto 3MA e esta, ao lado do violoncelista Vincent Segal, onde, efectivamente, se pressente algo do espírito da música clássica. Forçando a relação, possuirão os duetos atmosferas comuns a peças para harpa e violoncelo de Villa-Lobos, Lou Harrison ou Isang Yun, embora mais depressa evoquem a Penguin Cafe Orchestra de “Signs of Life”. Mas interessará antes confirmar como falam a uma só voz, adaptando-se a diferentes escalas modais, vagueando pelo globo, desenhando arabescos, emaranhando-se nas 21 cordas da kora as quatro do violoncelo, estalando notas como elásticos até, por fim, nada mais subsistir que o seu próprio movimento, para lá da memória, no ponto preciso em que o novo se inicia. E aí, ficam desarmantes.

24 de julho de 2010

Star Number One de Dakar “La Belle Époque (1974-1980)” & Étoile de Dakar featuring Youssou N’Dour “Once Upon A Time In Senegal – The Birth Of Mbalax 1979-1981”

A relação da Orchestra Baobab com o ‘ocidente’ tem muito de conto de fadas: obscuras gravações trazidas a lume por um radialista britânico, editoras a vasculhar nos baús da diáspora, uma reunião após vinte anos de inactividade, reedições, digressões, regresso a estúdio, até que, por fim, se sobrepôs o mito à realidade tornando-se a orquestra senegalesa no epítome de um abrangente processo que se poderia apelidar de re-africanização da música afro-cubana. O que, tendo em conta a desarmante beleza da sua produção, será inegável. Agora, parecerá desproporcional à fama gozada pela banda que a precedeu – a Star Band – e por dois outros ramos desse mesmo tronco: a Number One, que lhe disputava os fãs, e a Étoile de Dakar, que a arruinou. Ouvir em sequência estas compilações é sentir-lhe o céu a cair em cima. Se a Number One, liderada por Pape Seck, se revelava já agressiva e feérica – o seu guitarrista, Yakhya Fall, ao contrário do mais delicado Barthélémy Attisso na Baobab, usava pedais de efeitos trémulo e fuzz –, a Étoile de Dakar representa uma violenta actualização da música urbana de Dakar, toda ela provocante, enérgica e com um ímpeto juvenil que implicava cortar com o passado. “La Belle Époque”, em 28 temas, traz na íntegra o primeiro LP da Number One (“Maam Bamba”), exclui um par de canções do seminal “Jangaake” e dos posteriores “78 Vol. 1”, “78 Vol. 2” e “Yoro-Kery Goro”, colhendo só as pérolas de “Jiko-Nafissatu Njaay”. O volume consagrado à Étoile, de Youssou N’Dour e Badou N’Diaye, reúne pela primeira vez as cinco cassetes editadas pela Touba durante os dois relampejantes anos de actividade do grupo. Um sobressalto de modernidade.

17 de julho de 2010

Sugestões de Verão

Swamy Haridhos & Party “Classical Bhajans”
Em 1967, Bengt Berger (futuro percussionista de Don Cherry e autor, em 1981, de “Bitter Funeral Beer”) partiu para a Índia. A família do seu professor de tablas levou-o a um concerto do santo Swamy Haridhos, que Berger gravou. São mil pessoas, harmónio, violino e percussão a cantar bhajans (canções devocionais baseadas em ragas clássicas). E ouvi-las hoje é como mergulhar no mais purificador dos rios.

“Panama! 3 – 1960-75”
Ao terceiro volume, a Soundway pega na música para discutir política. Reluzente, evoca swing, son cubano, calypso, mento ou cumbia, mas logo o funk consciencializado dos combos nacionales (Mozambiques, Silvertones, etc) distorce bolas de espelho até nelas reflectir uma sociedade segregada. Seria tudo demais para a estação, não tivessem dependido também eles de incendiar pistas de dança.

Edu Lobo “Tantas Marés”
Ouvir, ao fim de 15 anos, o regresso de Edu Lobo aos originais a reboque de versões de canções compostas com Chico Buarque para “O Grande Circo Místico” e “Cambaio” é como ver a selecção brasileira a jogar sem Ronaldinho Gaúcho: implica a vitória do racionalismo naqueles de que esperávamos sensualidade. Mas só Edu Lobo para adocicar desta forma um mar de previsibilidade.

“Black Man’s Cry: The Inspiration of Fela Kuti”
Fela Kuti, nos últimos anos, tem sido uma espécie de Bob Marley superlativo. Elegeram-no como símbolo os ainda mais politizados, os ainda mais estetizados, os ainda mais drogados. Mas a sua obra resiste à beatificação, ainda que a sua compreensão dependa de abanões como este: oblíquas partilhas do seu legado com inesperada origem na Colômbia, Trinidad ou, mais recentemente, Munique.

Ghalia Benali “Sings Om Kalthoum”
Decantação absoluta dos ensinamentos de Umm Kulthum (aquela a que chamavam ‘astro do oriente’, “quarta pirâmide do Egipto’, etc) dispensando o registo semi-operático das ondulantes orquestras que a acompanhavam e concentrando antes a acção num enlevo de câmara em que contrabaixo, oud e pandeireta sublinham as sombras na voz de Benali. Perfeito para dias em que o sol se revele impiedoso.

11 de julho de 2010

Bill Orcutt

Ontem, no Museu do Chiado, não andou longe disto:

No fim, na parvoíce do costume, falávamos em 'back porch Paredes', 'Robert Johnson autista' ou 'white trash Eric Clapton'. Foi só ao pegar no LP que nos apercebemos de uma evidência que até então nos tinha escapado. É que Bill Orcutt - ainda que colocando-o na capa de pernas para o ar - tornou claro aquilo ao que veio: tocando, arranca a cabeça a John Mclaughlin e a Santana... e nem o guru lhe escapa.

10 de julho de 2010

"To Scratch Your Heart: Early Recordings From Istanbul"


Combinando petulância e sentimentalismo, o título desta compilação evoca Refik Halid Karay, quando se referiu assim o satirista turco à chegada da grafonola a Istambul: “nestas ruas pautadas por cafés, a cacofonia produzida por umas quarenta grafonolas a tocar em simultâneo mastigar-lhe-á aos ouvidos, arranhar-lhe-á o coração e rebentar-lhe-á a cabeça”. Poderá parecer exagero, mas a frase ganhará acutilância se entendermos que o mecanismo não veio substituir o silêncio e sim sobrepor-se ao ruído da cidade que, em 1850, Flaubert previu vir a tornar-se (novamente) o centro do mundo. Porque a Istambul de princípios do século XX, para olhares mais distraídos, era ainda a dos dervixes, a do teatro de sombras Karagöz, do antigo mercado de escravos, do Sultão e do seu harém, das mansões dos Paxás e a das vozes dos gregos, arménios, curdos e dos judeus que falavam ladino (aqueles que a cidade de hoje não quis manter como seus). Istambul, efectivamente, nem era Istambul mas sim Constantinopla, capital do Império Otomano. Por isso, de certa forma, ao coincidirem com o seu fim, ouvem-se estas gravações (predominantemente de solistas dos anos vinte entregues a formas modais clássicas) como um estertor. A ideia, assim exposta, traz à mente William Basinski, quando fala o esteta da desintegração sobre a “morte das melodias”. Uma entrevista sua para a revista “Bomb” terminava, aliás, com a frase: “o mundo acabou, isto é só o som do pó a assentar” – dificilmente se imagina melhor definição para este material. No fundo, como escreve Orhan Pamuk no seu livro de memórias sobre Istambul, trata-se de “hüzün”, a palavra turca para ‘melancolia’ e uma ambígua forma de encarar a vida que tem tanto de afirmação quanto de negação. Entendê-lo é desvendar os segredos desta música que ao pó tornará, mas que por agora interessará manter perto.

3 de julho de 2010

Issa Juma and Super Wanyika Stars "World Defeats the Grandfathers: Swinging Swahili Rumba 1982-1986"

Nasce, hesitante, mas logo diz ao que vem. E brilha com a intensidade de um dia que, aos primeiros raios de sol, desponta para aclarar o destino dos homens. Porque esta variante queniana da rumba congolesa não precisa de mais de cinco segundos para apontar um caminho e, sem arrependimentos, efectivamente o seguir. Quanto muito, muda de velocidade, acelerando nas curvas e abrandando nas rectas, evocando o seu princípio e adiando o seu fim para que nunca chegue o amanhã. Mas raramente se desnorteia. Pelo contrário, espanta que, em temas que vão dos oito aos dez minutos, fixe a atenção de quem a ouve em cada nota (naquelas guitarras eléctricas que se imaginam dedilhadas com a articulação táctil do braille), melodia (em que canta a diáspora da África Ocidental filtrada pela sensibilidade Oriental) ou ritmo (exercícios sobre o soukous em que predomina a cavacha, conduzida de forma marcial nos pratos de choque da bateria e sublinhada pelo pulsar de baixos andantes). Ainda por cima quando é toda ela mais leve e gasosa que a matricial. Carácter, aliás, conquistado numa Nairobi dominada por músicos zairenses e tanzanianos (o caso de Issa Juma) que a souberam desviar para longe da fonte. E foi o vocalista dissidente dos Kumba Kumba e Simba Wanyika o responsável por – aproximando-a do benga e acercando-a do ‘carrossel’ kamba – lhe introduzir a dinâmica e espacialidade aqui tão bem retratadas. Até por isso será esta edição importante (além de incluir inéditos, como ‘Mony’, que surge numa mistura diferente da de “Sigalame 2”, a compilação que em 1990 apresentou Juma à Europa). Mas terá alcance verdadeiramente considerável se, consequentemente, motivar a reintrodução no mercado daqueles que marcaram então a música no Quénia (Kakai Kilonzo, Victoria Jazz Band, International de Nelly, Super Volcano, Super Mazembe, Shika Shika, DO7, Migori Super Stars ou Gem Lucky Band) e que estão hoje à beira do esquecimento.