27 de fevereiro de 2016

Larry Young “In Paris: The ORTF Recordings” (Resonance, 2016)



(Nathan Davis, Larry Young, Woody Shaw e Billy Brooks @Le Chat Qui Pêche, Paris, c. 1964-65, por Jean-Pierre Leloir)

Zev Feldman, da Resonance, terá sentido um sobressalto tal ao escrever a nota introdutória para a brochura deste lançamento que se baralhou nas datas: “Foi há quase 38 anos que pela última vez surgiu uma novidade em disco de Larry Young. Infelizmente, 38 foram também os seus escassos anos de vida.” Por meia dúzia de meses, no que às contas do produtor concerne, a verdade é que faleceu aos 37, em março de 1978. E quanto a edições, Feldman referir-se-á a “The Magician”, de 1977, uma tentativa final de Young em obter sucesso comercial, já que o favor da crítica, esse, tinha-o há muito abandonado. Terá caído no esquecimento do escriba que “Mother Ship”, a derradeira sessão do organista para a Blue Note, em 1969, permaneceu inédita até 1980. Na ocasião, da pena de Michael Cuscuna, a prosa na sua contracapa terminava assim: “Morreu em vão, Larry Young, mais uma vítima dessa epidemia que dá pelo nome de incompetência hospitalar e negligência médica.” Hoje, com mais cautela mas não menos condolência, Larry Young III lembra que o óbito do seu pai foi declarado quando se submetia a um tratamento para curar uma pneumonia, mas reforça que “as causas da sua morte continuam por apurar”. Como se sabe, é algo que tem em comum com Eric Dolphy, largado em agonia num corredor de hospital, em Berlim, porque, no caso, os médicos não conseguiram diagnosticar um coma diabético. Mas o que até ao momento se ignorava é que foi em consequência do desaparecimento de Dolphy, em 1964, que se deu a oportunidade de Young viajar para Paris.
É Nathan Davis, que tocava no famoso Le Chat Qui Pêche, com Dolphy e Donald Byrd, que o recorda, afiançando que foi em homenagem ao malogrado saxofonista que endereçou um convite a Woody Shaw para se mudar para a capital francesa, e que foi Shaw, posteriormente, que por sua vez insistiu para que Young e Billy Brooks a si se juntassem. É apenas uma das muitas estórias que esta antologia das gravações de Young captadas pela ORTF revela – outra é a de como todos se deixavam encantar por Béla Bartók. Há aqui incandescentes jams com instrumentistas locais, mas é na música do quarteto (Davis, Young, Shaw e Brooks) que se pressente já o apelo da eternidade.

Brahms/Bartók: Violin Concertos (Decca, 2016)




Perguntam-lhe o que une estes concertos, ao certo, e Janine Jansen responde com desfaçatez, falando na tonalidade daquelas quatro notas com que Bartók tentou captar o espírito de Stefi Geyer (“Este é o teu leitmotiv”, escreveu o compositor à violinista, numa apaixonada dedicatória com o seu quê de redundante). De facto, quer a sequência inicial deste concerto de Bartók quer a obra-prima de Brahms se encontram em Ré maior – e o que salta à memória é a reação de Brahms à noite de estreia do seu opúsculo, cujo programa abria com o “Concerto para Violino”, em Ré maior, de Beethoven: “Isto foi muito Ré maior e pouco mais!” Seja como for, dir-se-ia que, no intuito de estabelecer ligações entre as duas obras, se descurou o óbvio. Isto é, os materiais de promoção da Decca são fartos em referências à congenialidade magiar das peças – por batismo, presume-se, explícita no caso do húngaro, e, não tanto por via das suas famosas “Danças” mas mais em virtude das suas relações com Eduard Reményi e, naturalmente, com Joseph Joachim, a quem este concerto foi dedicado, implícita no do alemão – e totalmente estéreis em alusões a essoutro enlace fundamental que importaria referir: é que à data de composição deste seu concerto para violino (1907-1908), e quiçá tanto quanto a de Richard Strauss, era a influência de Brahms que Bartók mais acusava. Ou seja, a chave para o entendimento de ambas é, ainda, o romantismo, para não dizer só o afeto. Daí a mesma pletora sinfónica de entupir veias e artérias que se lhe reconhece, o mesmo virtuosismo vorticoso, a mesma voluptuosidade. Para uma visão mais acutilante de Bartók, entre as recentes, há que consultar a de Isabelle Faust e Daniel Harding, mas a verdade é que, aqui, Jansen e Pappano realizam a mais equilibrada leitura de Brahms em muito tempo.

20 de fevereiro de 2016

João Gilberto/Stan Getz “Getz/Gilberto ‘76” (Resonance, 2016)


Carrega-se no play e, cintada de silêncios, mais estrófica que histriónica, ouve-se a voz de Stan Getz em cuidados para não entaramelar as palavras, como se receasse blasfemar. Diz assim: “Em meu entender, João Gilberto é o cantor mais singular da atualidade... Um autêntico originador. A sua capacidade de cantar sem vibrato, mas com emoção, é irrepreensível. E o seu inimitável sentido rítmico, o seu intimismo, a par de um maravilhoso trabalho à guitarra, tornam-no único. Que um intérprete tão talentoso e eminente hesite tanto em tocar ao vivo é um daqueles mistérios. Mas ele está aqui esta semana. Senhoras e senhores: João Gilberto!” Sentado entre a desatenta audiência, Gregory Corso terá pensado: “Que profundidades tão simples/ Que simplicidades tão profundas”. Estava-se em 1976, no Keystone Korner, em São Francisco, e, como Harvey Milk na política, também o quarteto de Stan Getz se preparava para fazer história, levando a palco João Gilberto seis noites de seguida, de 11 a 16 de maio. Às lojas, nessa altura, chegava “The Best of Two Worlds”, o reencontro em disco entre o norte-americano e o brasileiro, doze anos depois de “Getz/Gilberto” ter posto o mundo inteiro a cantarolar ‘The Girl from Ipanema’. Presumia-se que tivessem feito as pazes. Afinal, como se sabe, além dos Grammy que arrumou no fundo de uma gaveta, muitos amargos de boca tinha dado o LP a João, começando porventura pelas sessões de estúdio, ou pela supressão da sua voz na canção que imortalizava Helô Pinheiro, e terminando, talvez, numa repartição de royalties de fazer rir ou no caso entre Getz e aquela que era então sua mulher, Astrud. 

Nada disto se menciona nas notas de apresentação deste “Getz/Gilberto ‘76”, gravado ao longo dessa semana de atuações no Keystone Korner. É estranho. Para mais quando se trata da Resonance, uma editora que, contrariamente a João, faz alarde do Grammy que recebeu em 2015 pelo que escreveu Ashley Kahn no livreto de “Offering: Live at Temple University”, de John Coltrane. Mas ainda mais extraordinário é James Gavin, reputado autor de biografias sobre Peggy Lee ou Chet Baker, vir agora dizer que Gilberto se tinha juntado a Luiz Bonfá e a Getz em “Jazz Samba Encore!” (deve estar a pensar em Jobim) ou, por exemplo, que ‘Chega de Saudade’ se traduz em inglês por “longing has arrived” (esta, nem o Google Translate). Sobram os depoimentos dos membros em vida do quarteto (Billy Hart: “O João dizia-me: toca mais como a chuva”; Joanne Brackeen: “Ele, sozinho, soava já como uma banda inteira”) e, claro, a voz daquele que, como a serpente no Éden, precisa apenas de abrir a boca para sujeitar quem o escuta ao seu encanto – uma metáfora muito pouco original, mas, aqui, pelo constante sibilar da fita, de caráter mandatório. Getz sola economicamente, o contrabaixista Clint Houston vai tocando as notas fundamentais de cada acorde (o que, neste contexto, é como nadar contra a corrente), Hart tenta fazer de Milton Banana (sem sucesso) e Brackeen, ao piano, tem a falta de decisão daquela que, antes de lá entrar, precisa sempre de passar os dedos ao de leve pela superfície da água para ver se está fria. João canta o que cantava na década de 70 (‘É Preciso Perdoar’, ‘Águas de Março’, ‘Retrato em Branco e Preto’ ou ‘Eu Vim da Bahia’) e o que sempre cantou (nomeadamente, de Caymmi: ‘Doralice’, ‘Samba da Minha Terra’ e uma ‘Rosa Morena’ para a eternidade). E o tempo recua e avança por sua causa. Quando se dá com estas linhas, “Eu nasci com o samba, no samba me criei/ E do danado do samba nunca me separei”, pensa-se: nem nós.

Count Ossie and the Mystic Revelation of Rastafari “Tales of Mozambique” (Soul Jazz, 2016)



Açulado por berros, urros e uivos, que na sua banda-sonora faíscam como relâmpagos numa noite escura, ‘Tales of Mozambique’, o tema-título deste fabuloso LP, dá voz aos medos do homem branco. Pelo menos, a tanto ambicionava Sam Clayton, filósofo e orador da seita rastafári, quando se punha a recitar a estória de como um naufragado, febril e sedento Vasco da Gama, no dia de Natal de 1492, ao ter finalmente dobrado o Cabo da Boa Esperança, foi dar à costa moçambicana, de como foi salvo por gentes que aí viviam em perfeita liberdade e de como, logo de seguida, as traiu. “Desde então,” conclui, “foi só sangue, suor e lágrimas para o povo moçambicano. Mas a luta continua!” E grita este “a luta continua” assim mesmo, em português de punho erguido, e nem a Frelimo faria melhor. 

É curioso. Até porque “Tales of Mozambique” foi lançado em 1975, já após os Acordos de Lusaka e no ano em que se formalizou a independência do país. Seria de esperar que a Soul Jazz falasse no assunto. Mas a editora prefere passar a palavra ao filho de Count Ossie, e Sam Williams acha que o disco é “como um livro de História”. Dificilmente. A não ser num mundo em que não se verifiquem os factos, pois nada do que aqui se conta tem a ver com a verdade: não tem o 1492, que queria à viva força fazer coincidir a chegada de Gama a Moçambique com a de Colombo às Bahamas, não tem a referência ao Natal e menos ainda a assunção de que teria sido o navegador a instituir a escravatura na África Oriental. Nem Gama foi Bartolomeu Dias. Mas o mal estava feito e em 1976 era Hugh Masekela a cantar: “Everybody sez that he’s to blame/ For all colonization”. Este asco a Vasco não viu Camões. Enfim, seja como for, igualmente importante é não esquecer que este descomprometimento específico com a realidade só nasceu porque houve quem quisesse evocar uma experiência que não conhecia mas cujas dores não parava de sentir, e lembrar uma existência que por mais remota que fosse não cessava diariamente de lhe assomar ao espírito. (No original, para não se perder o sotaque) Ossie disse: “Yah know, man was anxious, all o’them time, to know the answers to puzzles about himself and his race.” É a isto que soam.

13 de fevereiro de 2016

Michael Formanek – Ensemble Kolossus “The Distance” (ECM, 2016)



De certa forma, este “The Distance” sugere um olhar atualizado sobre “Nature of the Beast” (Enja, 1997). Ou, melhor, tratar-se-á de mais um caso em que se atribui a material antigo o dom da profecia. É que, já aí, nomeadamente em ‘Thick Skin / Dangerous Crustaceans’, quando Tim Berne, Tony Malaby e Chris Speed se juntavam a Formanek, Jim Black, Steve Swell e Dave Douglas, se diria lançada a semente para o eloquente exercício de escrita que agora se concretiza. Claro que, entre um e outro momento, se dá um hiato na expressão mais visível da atividade do contrabaixista e compositor que, neste decénio, só um par de CD na ECM (“The Rub and Spare Change” e “Small Places”, ambos em quarteto) veio interromper. Não obstante a excelência de cada um, cumpririam neste raciocínio a função dos exercícios que terá de fazer quem pretenda recuperar uma determinada capacidade motora. Até em virtude de uma curiosa titulação – “The Distance” é dominado por “Exoskeleton”, uma suíte com cerca de uma hora, formada por andamentos como ‘Impenetrable’ ou ‘Beneath de Shell’ – salta à memória esse registo mais remoto.

Mas nada deixava antever a magnificência de que o atual se reveste. No material de promoção da editora, Formanek admite um peculiar conjunto de influências: Messiaen, Mingus, Sun Ra, Anthony Braxton ou Henry Threadgill. Mas não se levará a mal quem, intoxicado, por exemplo, pelo que escute em ‘Beneath the Shell’, se deixe transportar para aquele tempo em que verve melódica, elegância rítmica, subtileza harmónica e apurado sentido do dramático eram combinados por Gil Evans ao serviço de Miles Davis ou por Billy Strayhorn à sombra de Duke Ellington. Convenhamos, comparada à paleta de infinitas matizes de que se socorriam essoutros orquestradores, Formanek recorre, aqui, a pouco mais que uma escala de cinzentos (entre os instrumentos deste Ensemble Kolossus incluem-se quatro trombones, clarinete baixo ou saxofone barítono). Ou seja, pese embora a referência à antiguidade grega, não se terá deixado subjugar inteiramente por aquilo que, um dia, Tom Zé definiu como “complexo de épico”. No entanto, nem a agilidade das suas cadências, o exotismo das suas modulações ou o sotaque dos seus solistas compromete a coesão de uma expressão coletiva que se arrisca a ficar para a história.