31 de janeiro de 2015

Steve Lehman Octet “Mise en Abîme” (Pi Recordings, 2014)



Dir-se-ia marcado por uma certa contundência teórica, este novo álbum de Steve Lehman. Afinal, em termos académicos, remete para aquele caprichoso escrito de André Gide, de 1893, em que, pela primeira vez na história da literatura, se reconhece o princípio do mise en abyme. Um que, muito resumidamente, depende da relação de similitude estabelecida entre um fragmento e o relato que o inclui, uma espécie de síntese intertextual – “Las Meninas”, de Velázquez, o modelo pictórico que logo lhe saltava à memória. Mas, basta olhar em volta, o mais difícil hoje em dia é precisamente encontrar objetos que enjeitem os sinais do código metalinguístico. Pelo que, antes de mais, será importante passar a palavra a Lehman: “Este título refere-se à necessidade de me manter comprometido com os valores da surpresa e da descoberta, e, ao mesmo tempo, de tentar compreender a minha identidade artística e aceitar o facto de que, no fundo, passamos a vida a redescobrirmo-nos”, diz nas notas de apresentação. Para comunicado de imprensa, não está mal. Claro que Italo Calvino – na sua altura, ele próprio nenhum estranho à técnica do mise en abyme – lhe foi superior quando, em “Se Numa Noite de Inverno um Viajante”, contou: “Gostaria que todos os pormenores que escrevo concorressem para transmitir a impressão de um mecanismo de alta precisão mas ao mesmo tempo de uma fuga de encadeamentos a remeter para algo que permanece fora do raio de visão.” Não há melhor resumo daquilo que se passa neste disco.

“Mise en Abîme” está recheado de conversas: reais e potenciais. O que é o mesmo que dizer que cada peça de Lehman se organiza a partir de uma posição de diálogo com outras músicas, existentes ou não. ‘Parisian Thoroughfare Transcription’ é disso um paradigma: contrariamente ao que tudo indica, não se trata de uma transcrição do tema homónimo de Bud Powell, mas, sim, de uma frágil e perentória revelação que se desfaz mal se forma, constituída por uma gravação caseira de Powell a tocar Chopin, de trechos de uma entrevista sua e, ainda, por um solo subliminar de Lehman em saxofone alto que, aqui, é como um fantasma que parte em todas as direções e em todos os cantos se desdobra, entre muitas coisas mais ocultando a noção de autoria. Há outros momentos assim, com fissuras cujo preenchimento provém de semelhantes aparições, capazes de sugerir continuidades irrealizáveis, de operar ilusões referenciais, mas não é aí que mais se evidenciam as virtudes especulativas de Lehman. É quando reflete sobre os problemas da sua escrita, quando filtra normas relativas à sua génese e se vira para o seu processo de criação que mais se manifesta o poder que a transformação exerce sobre si. Neste seu octeto, curiosamente, é o vibrafone personalizado de Chris Dingman, polvilhado de duplos sustenidos, que articula a infinidade de junções visitada por Mark Shim ao saxofone tenor, Drew Gress ao contrabaixo, Tyshawn Sorey na bateria, Jonathan Finlayson no trompete, Jose Davila em tuba e Tim Albright ao trombone.

Numa era em que o jazz é rico naquele heroísmo desencantado de figuras que nada têm senão o que consigo carregam, Lehman liga-se a uma rede de apoio que traz mais significado àquilo de que estamos apenas habituados a entender o sentido: uma música sujeita à vivência de todos quanto a escutam.

Dom Um Romão “Dom Um Romão/Spirit of the Times” (Soul Brother, 2014)



Por arrasto invocando o espírito de Doum, há uma oração a Cosme e Damião que fala do “poder de aniquilar qualquer efeito negativo de causas decorrentes do passado e presente”. Nessa fé batizado, outra coisa não propunha Dom Um (1925-2005) sempre que nas baquetas pegava, projetando uma música à altura dos seus oragos, desses santos que no altar do seu nome possuíam textual domicílio. Não exigia maior utopia do que aquela que pressupunha um Brasil para todos, uma América do Sul sem defeitos, invulnerável aos muitos desgostos da sociedade moderna. E, no entanto, talvez por acompanhar de perto acontecimentos que em tudo contrariavam esse seu desejo mais profundo, há poucos discos mais intransigentes do que aqueles que produziu no ano do Golpe Militar – um para si, outro para Flora Purim, de que era marido – antes de partir para os Estados-Unidos como quem foge à prisão. Para trás ficava a aventura no jazz praticamente geométrico dos Copa Trio, Copa 5 ou Trio 3D. De momento, concentrava-se na mistificação a que recorria para sobreviver ao lado de Sérgio Mendes e Astrud Gilberto: a de que o sotaque brasileiro era uma afetação desligada da ideia de progresso. Mas bastou um par de anos ao serviço dos Weather Report, formação que rejeitava a própria hipótese de neutralidade, e, por conseguinte, estranhar-se mais ainda de si mesmo, para se tornar a encontrar. Nesse período, entre 1972 e 1973, as suas excelsas gravações para a Muse, agora reunidas, remetem para um local em que vicejava uma espécie de avesso do épico, edificado por nativos de sexo eternamente exposto, endoados por muitos bruxedos mas enredados numa lúcida luxúria. Consigo: Dom Salvador, João Donato, Sivuca, Amaury Tristão, Joe Beck, Lloyd McNeil, Jerry Dodgion, Stanley Clarke e as almas dos que a sua música curava.

Schubert: Winterreise (Harmonia Mundi, 2014)



No seu “Schubert’s Winter Journey: Anatomy of an Obsession”, acabado de publicar, Ian Bostridge fala acerca do pavor que lhe inspirava ‘Boa Noite’, o gesto inaugural deste ciclo: “Ficava enormemente aliviado assim que terminava. Dada a minha inexperiência, ou porque me sentia menos comprometido com o tema do que o que devia ou por desconfiar da visão do compositor, tinha receio de me aborrecer. Afinal, em “Winterreise”, não há canção mais longa do que essa”. Goerne pediria permissão para discordar. Nesta sua leitura, de modo invulgar, tal honra cabe a ‘A Estalagem’, o eufemístico cemitério cujas portas permanecem fechadas ao viandante, ao qual nenhuma redenção ou qualquer lenitivo se concederá, nem mesmo o que vem com a morte. Dir-se-ia uma forma de sustentar a inelutabilidade do destino deste protagonista, fadado a errar num purgatório coberto de neve, uma arca frigorífica para a alma. Pontuada pelo absurdo existencial, sugerindo, até, que Schubert não era inteiramente ignaro do humor negro, e com episódios de profunda alienação, não surpreende que Beckett tenha sentido arrepios na espinha ao ouvir “Viagem de Inverno”. Mas tal invocação servirá sobretudo para sublinhar a resistência contemporânea a um modelo interpretativo absoluto. Ilustra-o o número deste mês da “Gramophone”, com Bostridge a receitá-la como tratamento de choque, Mark Padmore a frisar os seus aspetos mais impassíveis, Gerald Finley e Christoph Prégardien a descreverem-na como o hino de um sobrevivente ou, em posição diametralmente oposta, Jonas Kaufmann a tomá-la pelo último estertor verbal de um suicida, possivelmente cifrado no crocitar de um corvo. Goerne, que aprendeu com Fischer-Dieskau, parece saber que, contra todas as evidências, nem sempre é preciso que uma coisa termine para que outra comece.

24 de janeiro de 2015

Blue Note: Uncompromising Expression – The Singles Collection (Blue Note, 2014)



Não é disso que fala o título desta antologia. Mas, inversamente proporcional ao vínculo com o mais indulgente ecletismo patrocinado pelos que hoje lhe conduzem os destinos, o descomprometimento que da análise dos seus conteúdos se depreende parece ser, antes de mais, com a própria biografia original da Blue Note. Porque nem era assim tão absurdo o que se pretendia – celebrar o virtual 75º aniversário de uma das mais emblemáticas chancelas da história do jazz por meio da evocação de 75 dos seus singles –, havendo, até, uma forma de o alcançar que se diria irrepreensível: coligir em exclusivo material lançado até 1951, isto é, correspondente ao período em que o single se provou de facto o inevitável fonograma de que a editora se socorreu. Mas não, ao aventurar-se de modo predominante pela era moderna – e inclusivamente contemporânea – das suas produções, isto é, após Alfred Lion e Frank Wolff terem dado início ao fabrico dos seus primeiros LP, e já depois da dispersão do seu catálogo por grandes conglomerados, o retrato que aqui se propõe é, acima de tudo, um que destrói a mais iconográfica das suas identidades mediáticas: aquela que se associa aos definitivos testemunhos de Wayne Shorter, Bobby Hutcherson, Andrew Hill, Herbie Nichols, Larry Young, Tony Williams, Don Cherry, Sam Rivers, Grachan Moncur III, Cecil Taylor ou Eric Dolphy (ainda que apenas por “Out to Lunch”), todos daqui ausentes porque, lá está, e como admitia Richard Cook em “Blue Note Records: The Biography”, os seus “cogentes programas de música” eram essencialmente consagrados à longa duração. Ou seja, a ativação do single enquanto dispositivo comercial sujeitava-se exatamente às convenções de mercado que, no geral, a Blue Note procurava contrariar. Aliás, a ambivalência que as designações “Uncompromising Expression” e “The Singles Collection” contiguamente acarretam já é, de si, desconcertante: invoca-se a mais antiga declaração de princípios dos fundadores da Blue Note (uma ação pensada “para favorecer, sem qualquer compromisso, a expressão do hot jazz e do swing”, traduzidos numa “manifestação social e musical” em que interessa reconhecer “o seu impulso e não os seus adornos comerciais e sensacionalistas”, escreviam eles em 1939) para, precisamente através do formato em que a indústria mais homogeneizou essa cultura e, por isso, privilegiando o que de mais formulário, oportunista e redutor veio a editora a abrigar, logo promover uma recusa dos seus valores. Não é isso o revisionismo?

17 de janeiro de 2015

Agenda: O que aí vem



Música erudita: Jordi Savall afirmou recentemente que “sem memória não há justiça”. Agora, como um inequívoco veículo para as suas convicções, anuncia um ambicioso “Guerra & Paz” em que revê a história militar europeia dos séculos XVII e XVIII. Não seria potencialmente tão interessante se não estivesse tão nitidamente marcado pelas incertas pulsões do seu ideólogo, mas trata-se ainda assim de um dos mais aguardados lançamentos de um começo de ano em que se destacam: “1865”, de um Anonymous 4 às voltas com a Guerra da Secessão; o “Rappresentatione di Anima, et di Corpo”, de Emilio de’ Cavalieri, por René Jacobs; um par de caixas de Richter (faria 100 anos) e outra dedicada a Boulez (haja saúde fará 90 em março); o “Requiem” de Dvorák dirigido por Herreweghe; um recital de Lubimov consagrado a Ives, Berg e Webern. Em palco, relevo para quem concilia presteza dramática e poder reivindicativo: Benjamin Grosvenor (8/02), Midori (21/03) e Volodos (24/05) na Casa da Música; Schiff na Gulbenkian (8/02 e 24/03). Do frio, os tricinquentenários de Sibelius e Nielsen a congelar os de Dukas, Magnard ou Glazunov.


Música do Mundo: Até ao verão, e aos festivais, é época baixa. E, neste domínio, só Lisboa escapa à absoluta hibernação dando-se um jogo de ténis de mesa entre duas instituições locais: Kayhan Kalhor e Erdal Erzincan vão à Gulbenkian (02/02); Toumani e Sidiki Diabaté conduzem à Culturgest (06/02) aquela carga emocional que no Mali se transporta de geração em geração; Zé Miguel Wisnik e Lívia e Arthur Nestrovski levam leituras agógicas e pedagógicas do cancioneiro brasileiro à Gulbenkian (20/02), onde, logo de seguida, entre fevereiro e março, com Calcanhotto, se manterá o sotaque mas elevará o grau de pretensão; de Marrocos, Driss El Maloumi na Culturgest (13/03) e, vindo da Tunísia, Anouar Brahem na Gulbenkian (28/04). Pelas lojas, não será a inundação de Rough Guides a contrariar a seca nos escaparates. 

Jazz: Só com as novidades de janeiro já a ECM tomou conta do trimestre: estreiam-se na editora a orquestra de Chris Potter e o trio de Vijay Iyer, celebra-se Kenny Wheeler com o póstumo “Songs for Quintet” e um quinteto de luxo liderado por Jack DeJohnette assinala os 50 anos da AACM. Da ACT virá “Bird Calls”, de Rudresh Mahanthappa; da Soul Jazz, a reedição de “Tanner Suite”, de Lloyd McNeill; da Clean Feed, discos de Chris Lightcap, Mario Pavone e Eve Risser. Ao vivo, antes dos festivais: Steve Lehman no Porto (Casa da Música, 01/02); Michael Formanek em Lisboa (Culturgest, 19/03) e em Portalegre (CAEP, 20/03); Nate Wooley no Porto (Culturgest, 26/03); Joe McPhee em Lisboa (Culturgest, 9/04) e Anthony Braxton na Casa da Música (25/04). E, sim, é ano de centenário de Billie Holiday, em que milhares de cantoras com tumultuosa relação com o feminismo tratarão de assassinar ‘Lover Man’, ‘My Man’ ou ‘The Man I Love’. Por enquanto, à exceção de “Coming Forth By Day”, de Cassandra Wilson, e uma nova biografia da autoria de John Szwed, nada de especial se anuncia, mas espera-se a devida reorganização de catálogo. Também Billy Strayhorn faria 100 anos, mas a esse não é preciso dar nada: Lady Gaga (na foto) tratou-lhe da prenda quando cantou ‘Lush Life’.