26 de setembro de 2020

Mah Damba “Hakili Kélé” (Buda, 2019)

Há muito que as mulheres têm a palavra, no Mali – pense-se nos exemplos de Fatoumata Diawara, Rokia Traoré, Kandia Kouyaté ou no de Oumou Sangaré, claro, cuja estreia se intitulava precisamente “Moussolou” (“Mulheres”). Como tal, em ‘Taba’ (‘O Maior Quinhão’), não admira que diga Mah Damba o seguinte: “Falar demais é uma fraqueza/ Mas, com o silêncio, não me peçam que desista/ Perdão a quem isto despreza/ Sou griô, não sou letrista.” Aliás, na atual crise política do país, após o Golpe de Estado de 18 de agosto, e com o poder nas mãos de uma junta militar, a Comunidade Económica dos Estados da África Ocidental promoveu um encontro com 59 líderes malianas. Se pedissem a opinião a Damba, é muito provável que ela desse voz a ‘Dambe’ (‘Cultura’): “Ouçam-me quando vos digo que a cultura das armas é estranha ao Mali/ A guerra não faz parte dos costumes soninquês, bambara ou fulani.” Depois, canta a frase que dá título ao seu primeiro disco em uma década: “Jamana kélé, myria kélé, hakili kélé”, isto é, “Um país, uma memória, um pensamento” (como jurava Bassekou Kouyaté, em Lisboa, há uma boa meia dúzia de anos: “A solução para o Mali temo-la nós, músicos, que somos como um país à parte, há séculos a promover a paz”). Não que Damba tenha interrompido o luto (Mamaye Kouyaté, o seu marido, faleceu em 2009) como reação aos mais recentes acontecimentos – pelo contrário, tal como aqueles discos de 2020 que se revelaram premonitórios ao falar de isolamento, por exemplo, este “Hakili Kélé” foi anunciado em 2019, apesar de só agora ganhar distribuição entre nós. O que talvez seja apropriado – aqui, quando Damba entoa a antiquíssima ‘Koulandjan’ acompanhada pelas suas filhas (Sira e Woridio) e pelo seu filho (Guimba), é na Carter Family às voltas com ‘Will the Circle Be Unbroken?’ que se pensa, um daqueles hinos de esperança e perseverança que garantem que, da doença à morte, a música tudo cura. Mah Damba, filha de Baba Sissoko, sobrinha de Fanta Damba, também se questiona se permanecerá ininterrupto o círculo que nos une na bem-aventurança – e quando a ação dos homens o parece negar, ela canta ainda mais alto.

John Coltrane "Giant Steps" (Warner, re. 2020)

Na edição de março de 1975 da revista “Black Music”, McCoy Tyner recordava Coltrane: “Ele dizia: ‘Olhas para o céu e vês as estrelas mas sabes que há muitas outras mais além.’ Ele estava à procura das estrelas que não se viam.” Certíssimo – e talvez por considerações do género, no seu estertor, em 1967, se tenha dedicado a sessões de estúdio que viriam a ser assim batizadas: “Cosmic Music” (1968), “Interstellar Space” (1974) e “Stellar Regions” (1995). Não obstante, antes de andar com a cabeça na lua, o saxofonista tinha de ter muito cuidado por onde andava ao desbravar o terreno minado da convenção – nessa perspetiva, “Giant Steps” (1960) é perfeitamente pivotal, pois, sobre o eixo discográfico, simboliza efetivamente o movimento giratório entre o Coltrane das décadas de 50 e de 60. E se neste passo de gigante não trocou os pés, pelo menos os pianistas de que no período se socorreu baralharam as mãos – escute-se Tommy Flanagan, no tema titular, cuspido para o ar por aqueles complicadíssimos ciclos de terceiras e desesperadamente à cata de um sólido a que se agarrar, como a Sandra Bullock de “Gravidade” antes de reentrar na atmosfera terrestre; já Cedar Walton, que o precedeu num humilíssimo outtake, nem sequer arriscou solar.

Aliás, aproveite-se para relembrar a cronologia: em março de 1959, com Walton, Paul Chambers e Les Humphries, Coltrane ensaiou o repertório de “Giant Steps”, que só em maio decidiu em definitivo fixar, com Flanagan, Chambers e Art Taylor – depois, enquanto esperava que se fixasse outra coisa (uma prótese dentária, que lhe corrigiu a embocadura), deixou de fora, com aquela sobriedade hindustânica que a caracteriza, ‘Naima’, a joia da coroa do disco, que gravaria em dezembro, com Wynton Kelly, Chambers e Jimmy Cobb, colegas seus no quinteto de Miles. Agora, nada disto permanecia inédito, e, nessa matéria, esta “60th Anniversary Edition” prolonga uma prática da Atlantic que remonta a “Alternate Takes” (1974) e que tem como expoente “The Heavyweight Champion” (1995) – chega, ainda assim, em nova masterização, embora a opção pelo estéreo prejudique o rigor diamantino do original. Era, à data, o LP mais pessoal de Coltrane: os temas, todos de sua autoria; ‘Naima’, o nome da sua mulher (nascida Juanita Grubbs e entretanto convertida ao Islão); ‘Syeeda’s Song Flute’, dedicado à enteada; ‘Cousin Mary’, a quem o ajudou a criar; ‘Mr. P.C.’, a Paul Chambers – apesar de tudo isso, mantém-se desinquietado pela suspeita de que possui no âmago algo por resolver (o que biógrafos e sectários de Freud atribuem à relação de Coltrane com a mãe). Como diria Tyner, soa a alguém a pôr a papelada em ordem antes de dar o salto para os estrelas – e só um tipo como Neil Armstrong veio um dia a saber o que terá sentido Coltrane ao lançá-lo.

19 de setembro de 2020

Ustad Saami “Pakistan Is For The Peaceful” (Glitterbeat, 2020)

Em “How Music Dies (Or Lives): Field Recordings and the Battle for Democracy in the Arts” (Allworth, 2016), a certa altura, dá-se com esta frase: “Na medida em que uma criança a balbuciar reproduz já a totalidade dos sons que o ser humano consegue emitir por via oral, aprender uma língua implica sempre algum tipo de esquecimento. Ou seja, em termos comunicacionais, para se adaptar a determinado sistema linguístico, um bebé é ensinado a fazer escolhas.” Como é óbvio, quando escreveu estas linhas, Ian Brennan estava longe de imaginar que um dia iria conhecer Ustad Naseeruddin Saami, alguém que se diria incapaz de perder a lembrança de todo e qualquer som que consigo nasceu. Aliás, escuta-se ‘Aman’, por exemplo, e o que começa por uma tímida lalação vai gradualmente ganhando mundo e adquirindo significado até, por fim, se afundar na garganta, um gemido abafado pelo que não chegou a ser – é como o ciclo completo da vida, do primeiro grito ao último suspiro, passando por tudo aquilo que é só dor ou que é só prazer. Afinal, Saami traduz-se por “ouvir” – e, em sânscrito védico, shruti, o seu conceito base, por “o que é ouvido” (na música do subcontinente, refere-se ao mais pequeno intervalo efetivamente percetível entre os tons de uma escala). Que é, grosso modo, o que Brennan foi convidado a ir fazer a Karachi, quando, em 2016, e porventura como reação ao atentado que vitimou o cantor qawwali Amjad Farid Sabri, discípulos de Saami o alertaram para a imperiosa necessidade de pôr a salvo dos talibãs um património único, que é precisamente aquele que o seu mestre personifica. Ao chegar, Ian encontrou um senhor franco, franzino, desdentado e destemido, e um pouco surdo, também, que se move como um gato pelas sombras de uma escala pré-islâmica de 49 notas que faz corar de vergonha qualquer almuadem que se preze (conferir igualmente em “Closer to God”, um documentário da realizadora Annette Berger). Sentado no terraço de sua casa, à noite, acompanhado pelos filhos (em harmónio, tanpura e tablas), Saami canta até ao sol raiar como se fosse a última vez, ou a primeira, apontando com as mãos um caminho que só ele sabe onde vai.

Couperin: Intégrale de L’Oeuvre pour Clavecin, Vol. 2 (Harmonia Mundi, 2020)

Quando há dois anos deu princípio a esta integral, Bertrand Cuiller não parecia saber lá muito bem por onde começar – talvez por isso a tenha genericamente batizado como “Couperin L’Alchimiste”, logo trazendo à memória aqueles quadros de David Teniers, o “Jovem”, de Mattheus van Helmont, ou de David Ryckaert, o “Jovem”, em que de forma muito direta se traçava um paralelo entre o artista e esse extravagante e erudito praticante da ciência oculta medieval. De facto, imaginava-se perfeitamente o cravista sentado num quarto esconso, lendo à luz da vela compêndios de toda a espécie, com almofariz, ampulheta e alambique a seu lado, a destilar os mais herméticos processos do compositor. E dir-se-ia ter em mãos achados de tal ordem que não resistia a mostrá-los em simultâneo – assim, saltava nesse volume inaugural da décima primeira suíte – ou “Onziéme ordre”, como François Couperin (1668-1733) as definiu – para a vigésima sétima, daí para a décima nona, para a quarta e para a terceira, até saltar novamente para a vigésima. Realmente, como dizia Angela Hewitt quando nesse mesmíssimo domínio entrou: “Isto são só ordens e mais ordens!” Agora, para acalmar os ânimos, quiçá, ou para permitir uma avaliação mais efetiva da importância da obra para cravo de Couperin na evolução da música programática, Cuiller regressa à casa de partida – ou melhor, recua a “Premier ordre” e “Second ordre” (1713) e atrasa os ponteiros do relógio até a uns “années de jeunesse” em que Couperin, ao atingir a maioridade, assumiu, depois do seu tio e do seu pai, funções na igreja de Saint-Gervais, no Marais (data do período um par de etéreas missas aqui interpretadas pelo organista Jean-Luc Ho e pelos cantochanistas Meslanges). Mas é sobretudo às graciosas evocações de Cuiller em “Les Silvains”, “Les Sentiments”, “La Prude”, “La Garnier” e “Les Idées Heureuses” que se voltará uma e outra vez – aliás, escuta-se a sequência “L’Auguste”, “La Majestueuse” e “La Milordine” e pensa-se num aluno de Couperin, o delfim Luís, Duque da Borgonha, em Versalhes, a borboletear, feliz, em torno do cravo, a querer voar com as asas que o seu percetor lhe dava... E que a todos dá.

12 de setembro de 2020

Gordon Koang “Unity” (Music in Exile, 2020)

No sexto episódio de “Stateless”, ao telefone, de Camberra, frustrada com o ciclo de notícias negativas, Genevieve (Sarah Peirse) dá instruções a Clare (Asher Keddie): “Põe o traficante de pessoas nas primeiras páginas dos jornais antes que aí chegue o comité da indignação. Precisamos de uma boa história para a imprensa o mais rápido possível!” Na cena, refere-se à iminente visita de uma comissão para os direitos humanos a um Centro de Instalação Temporária para detenção de migrantes – como é óbvio, um pesadelo de relações públicas para o pessoal do SEF nos antípodas! Ah, se ao menos tivesse “Unity” para serenar os ânimos – “Meus caros requerentes de asilo/ Sabemos que esperam há muito por um visto humanitário/ Têm de ser pacientes”, ouve-se, em inglês, mal começa o disco (‘Asylum Seeker’). Mas seria anacrónico: a série baseia-se principalmente em factos ocorridos em meados da década passada, sonhava Gordon Koang com o fim das atrocidades no Sudão, encerrado que estava o conflito contra o governo de Cartum. Aliás, pela região onde se concentram os nueres, era uma altura em que tocava euforicamente o seu thom (um alaúde com o braço em forma de lira) em casamentos e batizados sem recear que lhe cortassem o pescoço – de 2011, logo após a independência do Sudão do Sul, há no YouTube vídeos de atuações suas com cerca de 500.000 visualizações. Como se sabe, foi sol de pouca dura – e como o próprio diria à “ABC”, na Austrália, quando ao fim de um punhado de anos à espera lá conseguiu asilo: “[Em 2013-2014] Se olhassem para ti e te vissem com este mapa, matavam-te.” Fazia alusão à característica escarificação dos seus: normalmente, seis linhas paralelas traçadas na testa com uma lâmina de barbear, prova de que um jovem pode entrar na vida adulta antes que lhe apareçam as rugas de expressão. Com a indignação e preocupação estampadas no rosto, aqui, o maior paradoxo é a absoluta confiança com que se entrega a uma espécie de beatitude nilótica pelo qual passa a denúncia do tribalismo, do nepotismo, do saudosismo – cego de nascença e com a família num campo de refugiados no Uganda, de facto, só tem o futuro a que se agarrar.

Laraaji “Sun Piano” (All Saints, 2020)

No final dos anos 90, em Londres, conversava com Dominic Norman-Taylor acerca dos planos imediatos da All Saints: “Na verdade, não temos nada de especial em fase de preparação”, dizia-me ele. “Como sabe, a nossa missão é sobretudo a de manter em catálogo o património adquirido à Opal, a antiga editora do meu cunhado [Brian Eno]. Nessa perspetiva, prolongar uma relação de trabalho com gente como o próprio Brian, como o Harold Budd ou os membros dos Channel Light Vessel [Bill Nelson, Roger Eno, Kate St. John e Laraaji] é já suficientemente ambicioso. Quer dizer: com o Laraaji, duvido. É muito possível que o tenhamos perdido de vez para o campeonato da new age!” Como é óbvio, Norman-Taylor estava longe de adivinhar que a All Saints viria a colocar no mercado uma antologia como “Celestial Music: 1978-2011” (2013), reeditar “Essence/Universe” (2013), anunciar, em 2017, o díptico “Sun Gong” e “Bring on the Sun” ou, agora, através deste “Sun Piano”, precisamente, patrocinar a primeira gravação de Laraaji em piano solo (e entretanto, para o mês que vem, está já agendado o lançamento de “Moon Piano”). Realmente, com tão radiante produção, não há de o septuagenário insistir em adorar o astro-rei – não ignorando que, orientado por Brian Eno, e após um encontro fortuito pelos passeios de Washington Square Park, em Nova Iorque, onde, no chão, sentado na posição de lótus, tocava cítara, foi com “Day of Radiance” (1980) que saiu do anonimato. Aí, conforme relatou, não se deu tanto o caso de Eno nele ter tropeçado quanto o de ele ter intimado o universo a levar até si alguém como Eno – no fundo, é o seu método (“Sento-me, toco no piano e afirma-se uma presença. É um modo de veicular alegria, euforia, contentamento, silêncio, relaxamento, contemplação”, in “Aquarium Drunkard”). Pense-se em Bobby Timmons a descobrir o dédalo do gamelão ou num meio-termo entre Harold Budd e Bud Powell, entre o om e o ámen, mas fundamentalmente recorde-se o Satie que afirmou que a música “cumpre o papel da luz” – um raio de sol a rabiscar o céu, cintilantes acordes suspensos na atmosfera, um arco-íris de pernas para o ar, a sorrir.