Em “How
Music Dies (Or Lives): Field Recordings and the Battle for Democracy in the
Arts” (Allworth, 2016), a certa altura, dá-se com esta frase: “Na medida
em que uma criança a balbuciar reproduz já a totalidade dos sons que o ser
humano consegue emitir por via oral, aprender uma língua implica sempre algum
tipo de esquecimento. Ou seja, em termos comunicacionais, para se adaptar a
determinado sistema linguístico, um bebé é ensinado a fazer escolhas.” Como é
óbvio, quando escreveu estas linhas, Ian Brennan estava longe de imaginar que
um dia iria conhecer Ustad Naseeruddin Saami, alguém que se diria incapaz de
perder a lembrança de todo e qualquer som que consigo nasceu. Aliás, escuta-se
‘Aman’, por exemplo, e o que começa por uma tímida lalação vai gradualmente ganhando
mundo e adquirindo significado até, por fim, se afundar na garganta, um gemido
abafado pelo que não chegou a ser – é como o ciclo completo da vida, do
primeiro grito ao último suspiro, passando por tudo aquilo que é só dor ou que
é só prazer. Afinal, Saami traduz-se por “ouvir” – e, em sânscrito védico, shruti, o seu conceito base, por “o que
é ouvido” (na música do subcontinente, refere-se ao mais pequeno intervalo efetivamente
percetível entre os tons de uma escala). Que é, grosso modo, o que Brennan foi
convidado a ir fazer a Karachi, quando, em 2016, e porventura como reação ao
atentado que vitimou o cantor qawwali
Amjad Farid Sabri, discípulos de Saami o alertaram para a imperiosa necessidade
de pôr a salvo dos talibãs um património único, que é precisamente aquele que o
seu mestre personifica. Ao chegar, Ian encontrou um senhor franco, franzino,
desdentado e destemido, e um pouco surdo, também, que se move como um gato
pelas sombras de uma escala pré-islâmica de 49 notas que faz corar de vergonha
qualquer almuadem que se preze (conferir igualmente em “Closer to God”, um documentário
da realizadora Annette Berger). Sentado no terraço de sua casa, à noite,
acompanhado pelos filhos (em harmónio, tanpura
e tablas), Saami canta até ao sol raiar como se fosse a última vez, ou a
primeira, apontando com as mãos um caminho que só ele sabe onde vai.
Sem comentários:
Enviar um comentário