19 de setembro de 2020

Ustad Saami “Pakistan Is For The Peaceful” (Glitterbeat, 2020)

Em “How Music Dies (Or Lives): Field Recordings and the Battle for Democracy in the Arts” (Allworth, 2016), a certa altura, dá-se com esta frase: “Na medida em que uma criança a balbuciar reproduz já a totalidade dos sons que o ser humano consegue emitir por via oral, aprender uma língua implica sempre algum tipo de esquecimento. Ou seja, em termos comunicacionais, para se adaptar a determinado sistema linguístico, um bebé é ensinado a fazer escolhas.” Como é óbvio, quando escreveu estas linhas, Ian Brennan estava longe de imaginar que um dia iria conhecer Ustad Naseeruddin Saami, alguém que se diria incapaz de perder a lembrança de todo e qualquer som que consigo nasceu. Aliás, escuta-se ‘Aman’, por exemplo, e o que começa por uma tímida lalação vai gradualmente ganhando mundo e adquirindo significado até, por fim, se afundar na garganta, um gemido abafado pelo que não chegou a ser – é como o ciclo completo da vida, do primeiro grito ao último suspiro, passando por tudo aquilo que é só dor ou que é só prazer. Afinal, Saami traduz-se por “ouvir” – e, em sânscrito védico, shruti, o seu conceito base, por “o que é ouvido” (na música do subcontinente, refere-se ao mais pequeno intervalo efetivamente percetível entre os tons de uma escala). Que é, grosso modo, o que Brennan foi convidado a ir fazer a Karachi, quando, em 2016, e porventura como reação ao atentado que vitimou o cantor qawwali Amjad Farid Sabri, discípulos de Saami o alertaram para a imperiosa necessidade de pôr a salvo dos talibãs um património único, que é precisamente aquele que o seu mestre personifica. Ao chegar, Ian encontrou um senhor franco, franzino, desdentado e destemido, e um pouco surdo, também, que se move como um gato pelas sombras de uma escala pré-islâmica de 49 notas que faz corar de vergonha qualquer almuadem que se preze (conferir igualmente em “Closer to God”, um documentário da realizadora Annette Berger). Sentado no terraço de sua casa, à noite, acompanhado pelos filhos (em harmónio, tanpura e tablas), Saami canta até ao sol raiar como se fosse a última vez, ou a primeira, apontando com as mãos um caminho que só ele sabe onde vai.

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