27 de agosto de 2016

Chin: Live Recordings (Casa da Música, 2016)



Remontam a 2014, estas gravações, quando Unsuk Chin (n. 1961) foi a Compositora em Residência na Casa da Música. Note-se, aqui, o “Concerto para Violino” (2001), com a presença de Viviane Hagner e Ilan Volkov, uma peça absolutamente estranha e idiomática, ainda que possua estrutura eminentemente clássica, com “o andamento de abertura seguido de um andamento lento, e depois um scherzo e finale”, como bem apontou Habakuk Traber. Ao contrário do que viria a acontecer no “Concerto para Violoncelo” (2009/2013), por exemplo, solista e orquestra não estão em permanente oposição, nem a seta do tempo aponta tão decididamente num sentido só. Aliás, comparada com uma gravação anterior, Hagner consegue agora um equilíbrio maior entre o virtuosismo coletivo e a violência individual que a peça pede. A certa altura dá-se uma suspensão narrativa ao nível dos principais acontecimentos, como se convergissem para o mesmo espaço dois universos de ordens distintas, o que remete para uma declaração de 2003 da sul-coreana: “A minha música é um reflexo dos meus sonhos. Eu tento converter em música as visões de luz imensa e a incrível magnificência de cores que vejo flutuando pelo quarto (…) e ao mesmo tempo formando uma escultura sonora.” Esta frase poderia aplicar-se a “Rocaná” (2008), que significa “sala de luz”. Num andamento contínuo, de cerca de 20 minutos, é muito o que ilumina e ilude, revela e reserva, encandeia ou engana, nomeadamente quando associado à perceção do comportamento dos raios de luz, suas “distorções, refrações e ondulações”. Ou seja, é uma obra que questiona permanentemente as relações entre as entidades físicas, que é fugidia, fluida, fugaz. Nessa perspetiva, que contraste proporciona a audição de “Gougalon (Cenas de um Teatro de Rua)” (2009/2011), uma das obras-primas de Chin, com o Remix Ensemble capaz de absorver e projetar toda a ironia e emoção da peça, ora transformando-se numa exuberante orquestra de gamelão, ora invocando a languidez de uma banda de lupanar.

Pascal Niggenkemper 7ème Continent "Talking Trash" (Clean Feed, 2016)



Não há uma designação irrevogável para as concentrações de detritos que se encontram à superfície dos oceanos e que possuem como paradigma aquela que se vai apelidando de Grande Depósito de Lixo do Pacífico ou, na caracterização de Charles Moore, Grande Sopa de Lixo do Pacífico. Em “Moby-Duck”, de Donovan Hohn, também Curtis Ebbesmeyer recorre à metáfora, aproximando-a aos giros oceânicos: “É o que acontece quando mexes a sopa com a colher e ela continua a rodar uns segundos”. Falando acerca da acumulação de materiais não biodegradáveis no Giro Pacífico Norte pela ação das correntes marítimas, dizia: “Velejavam por aí conhecidos meus até repararem num frigorífico aqui, num pneu acolá, boias de vidro de antigas redes de pesca a perder de vista, plástico por todo o lado.” A descrição traz à memória a passagem das “Vinte Mil Léguas Submarinas” em que o Náutilus atravessa o mar de sargaços. Também o cartaginês Himilcão terá referido uma zona algácea em que “bestas marinhas se movem vagarosamente”. Hoje, trabalhos de investigação como os de Moore obrigam a substituir os sargaços pelos plásticos e a admitir que mesmo nos oceanos não há besta maior do que o Homem. Numa área superior a um milhão de m2, Moore recolheu amostras desse caldo pestilento que batizou de “sopa plástico-planctónica” e no qual se reconhecem consequências devastadoras para o meio ambiente e para a cadeia alimentar. Na arte, que não apenas no fotojornalismo, a câmara de Susan Middleton retratou a situação ao imortalizar o cadáver de um albatroz que tinha morrido de fome com o bucho cheio, com 250 fragmentos de plástico nas entranhas.

Agora é o contrabaixista Pascal Niggenkemper a deixar-se inspirar por tudo isto, por esta “absurda realidade”, com o objetivo de levar esse “sétimo continente a cantar, chiar, zunir, zumbir e gritar”. O resultado, como se pode imaginar, aproxima-se da música concreta e, até, da música industrial, com os pianos preparados de Eve Risser e Philip Zoubek entremeados de objetos enferrujados e pedaços de madeira, os clarinetes de Joris Rühl e Joachim Badenhorst imitando guinchos de aves marinhas e o conjunto de flautas de Julián Elvira, que mais parece a canalização do Náutilus, como que saído das profundezas. Dotado da fantasia que o tema desmerece, é também deslumbrante.

20 de agosto de 2016

“Ramon Llull: Temps de Conquestes, de Diàleg i Desconhort” (Alia Vox, 2016)





Sílvia Bel, Jordi Boixaderas, Waed Bouhassoun, Lior Elmaleh, Moslem Rahal, Hakan Güngör, Yurdal Tokcan, Haïg Sarikouyoumdjian, Dimitri Psonis, La Capella Reial de Catalunya, Hespèrion XXI, Jordi Savall (d)

No prólogo do “Livro de Maravilhas”, de Ramon Llull (1232-1316), porventura um dos seus escritos mais novelescos, Félix, o protagonista, prevenido já quanto ao estado das coisas, recebe do pai a incumbência de partir em peregrinação pelo mundo sem deixar de se deslumbrar e espantar com o que à sua frente aparecer: “E será a falta de caridade e devoção do nosso século que primeiro te deixará pasmo”, avisa. Setecentos anos depois, também ele marcado pelo signo da itinerância, é a vez de Jordi Savall fazer eco destas palavras: “Visitei a ‘selva’ de Calais acompanhado por músicos vindos da Síria, da Turquia, de Israel ou da Grécia”, contou à revista francesa “L’Express”. “Queria entrar em contacto com os refugiados, mas igualmente com os habitantes da cidade. Visitei os acampamentos e ouvi coisas difíceis e pungentes. Diziam-me que não tinham intenção alguma de ir para ali viver mas que não esperavam um tratamento tão pouco humanitário. São homens, mulheres e crianças em profunda aflição.”

Nessa perspetiva, o que Albert Soler, do Centro de Documentação Ramon Llull, da Universidade de Barcelona, escreve sobre um é válido para o outro: “Apesar da viagem, para Llull, se provar sobretudo um instrumento necessário à prossecução de projetos missionários, não deixa ao mesmo tempo de refletir um espírito de abertura e uma vontade indómita de comunicar. As suas propostas intelectuais e espirituais levam o leitor a abandonar as suas próprias zonas de conforto, a formular e dar resposta a questões por si mesmo ou a disputar o que lhe é dado de antemão a conhecer.” Também no caso de Savall se fala amiúde em missionarismo. E ele costuma repetir mais ou menos que “a arte é uma das dimensões mais nobres da vida na terra, mas que não é suficiente em si mesma. O estetismo pode levar à desumanização. Se a música não for mais que uma distração ou, inclusivamente, um ideal, desligado de aspetos espirituais, das dores dos outros e do quotidiano, então, sim, poderá conduzir a totalitarismos.”

Daí jamais abdicarem de enunciar tudo aquilo a que se propõem, estas edições de Savall. Multilingue e multifacetada, “Ramon Llull” abrange dois CD e um livro com cerca de 300 páginas, profusamente ilustrado, onde se incluem ensaios e notas biográficas e cronológicas acerca da vida desse pensador, poeta, místico e matemático do medievo mediterrânico. A música, gravada a 28 de novembro do ano passado, no Salão do Tinell, em Barcelona, propõe a recriação da banda sonora que acompanhou a vida de Llull, compreendendo música sacra (cristã, muçulmana e judaica), bem como memórias da Maiorca islâmica (com taqsim, danças mouriscas ou moachahas, interpretadas por instrumentistas sírios, marroquinos, turcos e gregos que, diz Savall, “são verdadeiros conservadores e ao mesmo tempo (re)criadores de um património intangível antiquíssimo”) e das cortes aragonesas de Jaime I, Pedro III, Afonso III e Jaime II, por intermédio de obras de trovadores e jograis como Raimon de Miraval e Bernat de Ventadorn.

Em notas de apresentação, Savall torna claro o complexo de emoções que de si se apoderou: “Ramon Llull exemplifica o homem que vive intensamente o seu tempo e que permanece fiel aos seus princípios e ideias até às últimas consequências, convencido de que a arte, o conhecimento, a fé e o diálogo são instrumentos para melhorar o mundo. Pensador, poeta, filósofo, teólogo, orador, evangelizador, tudo o que fez, e tudo aquilo em que acreditava, se revela um inesgotável testemunho de ensinamentos que permanecem em vigor e, mais do que nunca, necessários. É por isso indispensável recordar e alimentar a sua mensagem, estudando e difundindo a sua obra. Desse modo, o seu espírito continuará a conduzir-nos à luz e à sabedoria, imprescindíveis num mundo sem rumo em que, a cada dia que passa, o fanatismo e a estupidez nos afastam inexoravelmente dos ideais pelos quais se regeu mestre Ramon: os de uma civilização que fundamenta o seu humanismo no ensino e no diálogo, na espiritualidade e na beleza.”

Impõe-se aqui uma ressalva. É que, como sugeriu Luísa Costa Gomes no romanceado “Vida de Ramon” (publicado em 1991 e alvo de uma segunda edição revista este ano), “alguns comentadores torcem Ramon para a imagem de um beato ecuménico, interessado sobremaneira no diálogo das civilizações, na procura da raiz única da religião universal, e passam ligeiramente ao lado do seu dogmatismo e dos projetos de Cruzada. É verdade que, no princípio, enquanto os fracassos da Arte [‘Ars Magna’] não eram visíveis e amargos, se inclinou para as liberalidades, deixando em aberto discussões, persuadido da evidência que ele mesmo transportava, a saber, de que as luzes da razão e da demonstração fariam derrubar os limites dos credos particulares não-católicos. Mas a velhice encontrou-o cada vez mais aferrado à ideia autoritária que vinha da mistificação inventada pelo próprio de que os povos muçulmanos eram contrariados pela opressão dos déspotas e que, varridos estes, aqueles aceitariam a pregação cristã.”

Mas Savall, cuja curiosidade se diria tão incansável e transbordante quanto a de Llull, contorna o embuste da metafísica. Aliás, imagina-se o catalão a pegar na “Vida Coetânea” do maiorquino (o relato biográfico que Llull deixou aos cartuxos de Vauvert), ler o seu início (“Sendo Ramon senescal do Rei de Mallorques, ainda jovem, e muito dado a compor cantilenas ou canções, estava uma noite sentado junto à cama, disposto a compor e a escrever uma cantiga sobre certa dama a quem amava. Começava a escrevê-la quando, olhando à direita, viu Nosso Senhor Jesus Cristo pregado na cruz. Sentiu medo e, deixando o que tinha entre mãos, meteu-se na cama. Levantando-se no dia seguinte, voltou às vaidades de sempre; e passados quase oito dias, no mesmo lugar e à mesma hora, de novo se dispôs a escrever a dita canção; e de novo lhe apareceu o Senhor na Cruz”, etc.) e a pensar para si mesmo: ainda que o ponto não seja esse, que pena nada se saber dessa canção que Llull tentava a todo o custo completar.

Porque Savall crê numa frase de Elias Canetti que vem repetindo há uns bons 15 anos: “A música é a história viva da humanidade, da qual, de outra maneira, possuímos apenas as partes mortas.” E, já agora, deve comungar dessoutra que abdica de citar: “Quanto mais densamente se povoa o mundo e quanto mais mecanizada se torna a forma de viver, mais indispensável se deve tornar a música.” Pois, tal como esse descendente de judeus sefarditas evacuados à força de Espanha em 1492, também Savall vê a música como um “potente e intacto reservatório de liberdade”. Disse à “Folha de S. Paulo”, em 2001, que “a música não pode ser uma ciência, nem uma arqueologia. É sempre um ato criativo, e o ato criativo não pode ser uma imitação. Não pretendemos interpretar estas músicas como foram interpretadas na sua época. O que pretendemos é a fidelidade aos textos, ao espírito e caráter. A vigência de uma música depende da capacidade que tem de emocionar-nos hoje como um dia emocionou os seus contemporâneos.”

Nessa medida, esta edição, cujo subtítulo abraça o paradoxo (“Tempos de conquistas, de diálogo e de desconsolo”), é exemplar, pois a pretexto do périplo de Llull por Santiago de Compostela, Montpellier, Roma, Paris, Túnis, Chipre, Génova, Bugia e Sicília, os trechos de “Livro de Contemplação”, de “Vida Coetânea”, do belíssimo “Livro do Amigo e do Amado” ou de “O Desconsolo” (recitados em catalão por Sílvia Bel e Jordi Boixaderas) surgem investidos de um sentimento que por si sós não poderiam possuir, e que deriva de páginas sublimes como são “Aisse cum es genser Pascors”, de Miraval, “Maqam Hijaz”, de Ibn Zaydún, “Santa Maria, strela do dia”, de Afonso X, o Sábio, “Ya Mariam el bekr” (um hino mariano árabe, cantado de forma deslumbrante por Waed Bouhassoun), “Billadi askara min abdi al-lama” (uma dança mourisca), “Deus est ainsi comme li pelicans”, de Teobaldo I de Navarra, o Trovador, ou “Qamti be – Ishon Layla” (um lamento judaico na voz do insuperável, neste contexto, Lior Elmaleh).

Llull morreu em 1316, vítima da intolerância. Deixou escrito que os outros são “iguais a nós e à nossa natureza”. Nunca imaginou que ao fim de sete séculos ainda se pusessem em causa as suas palavras.

13 de agosto de 2016

Shostakovich/Glazunov: Violin Concertos (Decca, 2016)


Com a chegada de “O Ruído do Tempo”, de Julian Barnes, às livrarias, também nos escaparates das lojas de discos se acumulam títulos consagrados a Dmitri Shostakovich (1906-1975). Gautier Capuçon, por exemplo, com a Mariinsky, e sob direção de Valery Gergiev, gravou os dois concertos para violoncelo, acentuando-lhes o contraste (Erato); Andris Nelsons, por sua vez, ao comando da sinfónica de Boston, prosseguiu com a série “Under Stalin’s Shadow”, registando quinta, oitava e nona sem se chegar a comprometer com as muitas perplexidades que despertam (DG); já Vladimir Ashkenazy, com Zsolt-Tihamér Visontay, Mats Lidström e Ada Meinich, propõe um retrato mais abrangente e ao mesmo tempo mais íntimo do seu compatriota, através dos trios para piano, violino e violoncelo e desse dilacerado e simultaneamente dilucidado derradeiro opúsculo que foi a “Sonata em Dó maior”, para violeta e piano (Decca).

O retrato é o do costume: o de um homem solitário que busca refúgio na intimidade, bom numa série de coisas e fraco em muitas mais, chamado, enquanto paladino do regime soviético, a desempenhar um impossível papel que implicou todo o tipo de deserções da sua própria consciência e um sem-fim de recriminações e vitimizações, ocasionalmente estudadas e finalmente traídas pela excelência da sua escrita. Nessa perspetiva, não se vislumbra obra mais transparente do que o “Concerto para Violino em Dó maior”, composto entre 1947-48 e de pronto enfiado na gaveta, não fosse a sua publicação obrigá-lo a mais um ato de penitência perante Andrei Zhdanov (o concerto veria a luz do dia em 1955, após a morte de Estaline, quando Oistrakh o estreou). Aqui, da aberrante languidez do Noturno e do grotesco exercício do Scherzo à hermética melodia da Passacaglia e ao sopro final do acossado que se pressente no Burlesco, Benedetti está simplesmente arrebatadora. Como complemento surge o Op. 82, de Glazunov, para mostrar ao que soava a música russa antes da Revolução, da Grande-Guerra ou da Grande Purga.