25 de fevereiro de 2012

Traffic Sound "Virgin" (Munster, 2011)

Olhavam-se os astros e rasgavam-se os céus. A União Soviética ia para um lado em busca de Vénus e os EUA para outro à procura de Marte. Testava-se o Concorde e pelos gira-discos rodava um Zeppelin. Os Beatles tocavam pela última vez em público no telhado da Apple e astronautas pisavam a Lua, mas com 69 a acabar matava-se pelas ruas e o próprio planeta parecia esvair-se. De Lima, no Peru, os Traffic Sound suspiravam ‘Tell the World I’m Alive’ sabendo que ninguém os ouviria – arrancava uma nova década e o regime militar de Juan Velasco Alvarado aumentava a repressão e considerava o rock uma manifestação imperialista, empurrando-o para a clandestinidade. Assim, este belo artefacto de um mundo perdido, que só arquivistas na órbita da música progressiva souberam manusear, entende-se hoje – tal como o que do período se ouve no zambiano zam-rock – enquanto um grito abafado; uma residual demonstração de que também na América do Sul se compreendia o que em Canterbury faziam Caravan ou Kevin Ayers e na Califórnia os Byrds e os Love combinada com a tristeza de não se estar nem num sítio nem noutro. Talvez por isso tenham os seus membros (Manuel Sanguinetti, Willy Barclay, Freddy Rizo-Patrón, Willy Thorne, Luis Nevares e Jean Pierre Magnet, vindos dos pioneiros Hang Ten’s e Mads) mergulhado na cultura andina como se esta lhes fosse estranha, sugerindo chegar a uma ‘Meshkalina’ (incluída já pela Vampisoul no primeiro volume de “Back to Peru”) através dos Doors e de Aldous Huxley e não, como agora facilmente se conclui, pela tomada de consciência de que só com as armas que lhes foram dadas conseguiriam lutar. São o que divide o antes (Shain’s, York’s) e o depois (Laghonia, El Humo, El Polen) no rock peruano e em 71 lançariam um último disco, caindo, com o seu fim, mais a noite no país. Mas “Virgin” merece viver para sempre.

18 de fevereiro de 2012

Samba Touré “Crocodile Blues” (Riverboat, 2011)

Dia 8 de Fevereiro surgiu no mural da banda no Facebook o seguinte depoimento dos Tinariwen: “De forma a evitar os combates entre rebeldes e o exército maliano, muitos tiveram de abandonar as suas aldeias desde o início da insurreição. Estamos escondidos no mato há alguns dias com muitas mulheres, crianças e idosos. Há gente com fome e sofremos imenso com o frio. As condições são duras mas estamo-nos a aguentar”. A missiva não surpreende embora certamente desperte perplexidade naqueles que há menos de um mês acompanharam na mesma região a edição deste ano do Festival do Deserto, marcada por uma curta aparição de Bono – histriónico em palco, condescendente na imprensa – ao lado, precisamente, de membros da banda tuaregue. Entretanto, o Alto Comissariado das Nações Unidas para os Refugiados relata o exílio forçado de cerca de 20.000 pessoas (embora a Cruz Vermelha Internacional fale em 30.000) para o Níger, Mauritânia ou Burkina Faso e alerta para uma iminente crise humanitária. Samba Touré, que também esteve no festival, acompanha há anos a indeterminação desse povo de que é vizinho. Em Timbuktu, ao lado de Ali Farka Touré, cantou em songhai, peul, bambara e tamashek (a língua berbere) e também este seu último álbum se revela uma imperturbável mensagem de reconciliação. Aliás, é perfeitamente assintomático neste contexto de guerrilha, pois, face à escusada problematização étnica do conflito, não se encontra semelhante clareza de ideias e presença de espírito no discurso político das partes envolvidas. Por isso, este seu sereno manifesto deve ser entendido como a materialização de uma ideia para o Mali, e não, conforme o oportunista título e a previsível construção da imprensa internacional, mais um meditativo acto de espeleologia em torno do blues. Porque aqui louva-se a esperança. E pensa-se no amanhã.

11 de fevereiro de 2012

“Bollywood Bloodbath” (Finders Keepers, 2011)

Com honrosas excepções, nomeadamente pela inclusão de um primitivo ensaio extraído de “Mahal” (o clássico de 49 assombrado por dementes cânticos criados por Khemchand Prakash), o essencial da acção desta sugestiva antologia desenrola-se na primeira metade dos anos 80, quando, por clubes de vídeo do mundo inteiro, a prateleira de cima nas estantes consagradas a filmes de terror estava devotada a títulos como “Sexta-Feira 13”, “Shining”, “A Noite dos Mortos-Vivos”, “Um Lobisomem Americano em Londres”, “Poltergeist” ou às sequelas de “Halloween”. No entanto, estabelecido o maculado pano de fundo, e porque é de Bollywood que se trata, só compreenderá efectivamente ao que vem quem tiver em mente o vídeo que em 83 John Landis realizou para ‘Thriller’, de Michael Jackson. Porque numa produção cinematográfica profundamente antropofágica, a contingência de se dar pelo mais popular cantor do planeta a liderar uma parada de zombies numa curta-metragem eminentemente bollywoodesca legitimaria uma hemorrágica avalanche de obras que infinita e insaciavelmente lhe reciclariam os procedimentos. Os irmãos Ramsay, por exemplo, aqui representados com uma dezena de filmes, de uma épica tentativa de exorcizar um teriantropo espírito com reincarnação garantida à grotesca ressurreição de um cemitério inteiro, conduziram fórmulas semelhantes à exaustão. Mas a música, essa, provou-se de inesgotável criatividade e insuperável radicalismo. Bappi Lahiri, Rajesh Roshan ou Sapan-Jagmohan, aproveitando a relativa licenciosidade do género, empregaram-lhe nas bandas-sonoras linhas de baixo plasmáticas, sintetizadores espectrais, vocais possuídos, sequenciadores mutantes, percussão paranóica e um sádico arsenal de efeitos prontos a deixar sangue na bola de espelhos e a criar um pesadelo que nem sempre encontra equivalente no ecrã.

4 de fevereiro de 2012

Vijana Jazz Band - The Koka Koka Sex Battalion “Rumba, Koka Koka & Kamata Sukuma – Music From Tanzania 1975-1980” (Sterns, 2011)

“Ano novo, vida nova”, diz o ditado. Talvez por isso tenha partido a tanzaniana Vijana Jazz Band sob pseudónimo e em sub-repção de Dar Es Salaam rumo a Nairobi a 1 de Janeiro de 1975. E a verdade é que se pretendia gravar não tinha muito mais para onde ir. Porque por mais sucesso que atingisse no circuito local não conseguia o milagre de multiplicar o número de gira-discos no país; e enquanto não se esgotassem os títulos disponíveis no mercado a sua editora não pagaria novas sessões de estúdio. Nascia assim a sugestiva e eminentemente fraudulenta Koka Koka Sex Battalion, despontando com a urgência de uma febre (a do estilo koka koka) e o fulgor de seis iridescentes temas captados na sede do benga, os Hi-Fi Studios, na capital queniana. Até agora, a entrada da banda pairava misteriosamente nas poucas discografias consagradas às editoras da África oriental (em KenTanza Vinyl ou Muzikifan), mas, vasculhando nos baús da AIT, Doug Paterson, o organizador do indispensável site East African Music, foi capaz de restabelecer a ligação, desenterrar a história e situá-la nesta retrospectiva da Vijana Jazz, que se sucede às brilhantes antologias que dedicou a Western Jazz Band, Super Wanyika Stars e Shirati Jazz. E o que encontrou reforça a noção de elasticidade de uma orquestra feita de jactantes baixos, simétricos desenhos de guitarras em ricochete, expressividade idiomática (em narrativas de frequente perfídia), ondeantes solos de saxofone e um impecável sentido rítmico capaz de rivalizar com o melhor de Nuta Jazz, Dar International, DDC Mlimani Park, Safari Sound ou Maquis Original, num período em que a mais vaporosa música do país era a que melhor se impunha nas pistas de dança, e em que o estatuto periférico foi tanto uma maldição quanto uma cura.