30 de dezembro de 2017

“Studio One Supreme: Maximum 70s & 80s Early Dancehall Sounds” & “Dancehall: The Rise of Jamaican Dancehall Culture” (Soul Jazz, 2017)


Ao serviço da Youth Promotions, de Sugar Minott, avisava Tenor Saw: “Soem os alarmes/ Está mais um som a morrer.” Como é óbvio, jactante, referia-se à produção dos seus concorrentes, comparada à sua. Mas, em agosto de 1988, quando o seu corpo foi encontrado à beira de uma estrada secundária, em Houston, a rima terá vindo à cabeça de muito boa gente. A certidão de óbito diz atropelamento, mas Minott culpou os organizadores do evento e houve quem tenha apontado o dedo a Nitty Gritty, alegando negócios de droga mal resolvidos entre os dois – Gritty viria a ser assassinado à porta de uma loja de discos, em Brooklyn, em junho de 1991. Alguns anos antes, em novembro de 1980, em Kingston, o carro em que seguiam General Echo, Flux e Leon Johns (do Stereophonic Sound System) foi mandado parar numa Operação Stop – sem razão aparente, a polícia executou os três. Não terá sido necessário seguir o julgamento de Ninjaman (foi há dias condenado a prisão perpétua pelo homicídio de Ricardo Johnson) ou lembrar o caso de Vybz Kartel (a que foi imposta a mesma sentença em 2014) para evocar o longo historial de violência em nomes associados ao dancehall.

Agora, de certa forma, reunido o gabinete de crise da Soul Jazz, vem-se recordar esse tempo – que vai de inícios de 70, do Prince Jazzbo de ‘Minstral’ ou do Dillinger de ‘Natty Ten to One’, digamos, a meados de 80, quando King Jammy produziu ‘Under Mi Sleng Teng’, o primeiro tema jamaicano a recorrer a programação rítmica – em que os arautos de um género disposto a disputar em salões de baile a supremacia de reggae, lovers rock, roots e dub, não obstante dispensarem a cartilha da canção de protesto e se curvarem à paranóia coletiva, tiveram consciência de ter em mãos uma música nacional. Com apontamentos magistrais de Johnny Osbourne, Freddy McGregor e Michigan and Smiley, “Studio One Supreme” imortaliza contributos de Coxsone Dodd; a reedição de “Dancehall” (amputada, mas acompanhada pelo relançamento do livro de fotografia de 2008 de Beth Lesser) celebra quem se lhe seguiu (Jammy, Sly & Robbie, Winston Riley e Junjo Lawes) e superou.

23 de dezembro de 2017

Melhores do ano (Best Classical, Jazz and World Music recordings of 2017)



Metamorfosi Trecento (La Fonte Musica; Alpha)
Tye: Complete Consort Music (Phantasm; Linn)
Buxtehude: Trio Sonatas, Op. 1 (Arcangelo; Alpha)
Sheppard: Media Vita (Westminster Cathedral Choir; Hyperion)
Sorensen: Mignon (Katrine Gislinge; Dacapo)
Lucrezia Borgia’s Daughter (Musica Secreta & Celestial Sirens; Obsidian)
Compère: Missa Galeazescha (Odhecaton; Arcana)
Radigue: Occam Océan, Vol. 1 (Shiiin)
Tinctoris: Secret Consolations (Le Miroir de Musique; Ricercar)
Machaut: Sovereign Beauty (The Orlando Consort; Hyperion)

Menções honrosas: Stile Antigo em “Divine Theatre”, de Wert (Harmonia Mundi); na mesma editora, Matthias Goerne em “Lieder” de Schumann e “Cantatas” de Bach; Les Talens Lyriques em “Pygmalion”, de Rameau (Aparté); Ensemble Aleph em “Die Stücke der Windrose”, de Kagel (Évidence); Gidon Kremer em “Sinfonias de Câmara”, de Weinberg (ECM); Seong-Jin Cho em “Images”, de Debussy (Deutsche Grammophon); Nelson Freire em “Intermezzi”, de Brahms (Decca); Vicki Ray em “River of 1,000 Streams”, de Lentz (Cold Blue Music); Barbara Hannigan em “Crazy Girl Crazy” (Alpha); Emily Pinkerton e Patrick Burke em “Rounder Songs” (New Amsterdam). Do arquivo: “Tiger Balm/Amazonia Dreaming/Immersion”, de Annea Lockwood (Black Truffle); “Rose des Vents”, de Pierre Mariétan (Mana); “Four Indonesian Electronic Pieces”, de Otto Sidharta (Sub Rosa); “Hétérozygote/Petite Symphonie…”, de Luc Ferrari (Recollection GRM).

Ivo Perelman, Matthew Shipp “The Art of Perelman-Shipp" Vols. 1-7: "Titan", "Tarvos", "Pandora", "Hyperion", "Rhea", "Saturn" & "Dione" (Leo)
Wadada Leo Smith “Solo: Reflections and Meditations on Monk” (TUM)
Peter Evans, Agustí Fernández, Mats Gutafsson “A Quietness of Water” (Not Two)
Anemone “A Wing Dissolved in Light” (NoBusiness)
Fred Hersch “Open Book” (Palmetto)
Tim Berne’s Snakeoil “Incidentals” (ECM)
DEK Trio “Construct 2: Artacts” (Audiographic)
Matthew Shipp Quartet “Not Bound” (For Tune)
Ron Miles “I Am A Man” (Yellowbird)
Sirius “Acoustic Main Suite Plus The Inner One” (Clean Feed)

Menções honrosas: “Nerve Dance” (Michaël Attias), “Vertical” (Mario Pavone) e “Saxophone Special Revisited” (Rova Saxophone Quartet, Kyle Bruckmann, Henry Kaiser), na Clean Feed; “The Attic”, de Gonçalo Almeida, Rodrigo Amado e Marco Franco (NoBusiness); “Bells for the South Side”, de Roscoe Mitchell (ECM); “Vessel in Orbit”, de Whit Dickey, Mat Maneri e Matthew Shipp (AUM). Do arquivo: “Karyobin”, do Spontaneous Music Ensemble (Emanem); “Divine Music”, de Brother Ah (Manufactured); “Moshi”, de Barney Wilen (SouffleContinu); “Free Jazz”, de François Tusques (Cacophonic); “Song of Soil”, de Masahiko Togashi, Don Cherry e Charlie Haden (Tiger Bay); “Les Liaisons Dangereuses”, de Thelonious Monk (Sam); “On a Monday Evening”, de Bill Evans (Concord); “Truth, Liberty & Soul”, de Jaco Pastorius (Resonance). Foram-se Sunny Murray, Muhal Richard Abrams, Geri Allen, Arthur Blythe e Horace Parlan.

“Sweet as Broken Dates” (Ostinato)
“Oté Maloya” (Strut)
Tanzania Albinism Collective “White African Power” (Six Degrees)
“Welcome to Zamrock! Vol. 1” (Now-Again)
Les Filles de Illighadad “Eghass Malan” (Sahel Sounds)
“Pop Makossa” (Analog Africa)
Awa Poulo “Poulo Warali” (Awesome Tapes from Africa)
“Synthesize the Soul” (Ostinato)
Hamad Kalkaba “…And The Golden Sounds” (Analog Africa)
“Andina” (Strut)

Menções honrosas: a antologia “The Original Sound of Mali” (Mr. Bongo); “Lam Phloen”, de Phumphuang Duanchan (EM); “Nuits de Printemps”, de Abdou El Omari (Radio Martiko); “Eros in Arabia”, de Richard Horowitz (Freedom to Spend); gravações de campo no Brasil, em “La danse du souffle” (Ocora), e Etiópia, com “Ethiopian Urban and Tribal Music” (Sub Rosa); “Ragas of Morning & Night”, de Pandit Pran Nath (Just Dreams); “Gulu City Anthems”, de Otim Alpha (Nyege Nyege Tapes); o sétimo volume da Habibi Funk. E uma dúzia de títulos na PMG: “Boys and Girls” (Joe Moks), “Feelin’ Alright” (Kiki Gyan), “Funk With Me” (Danny Offia), “Celebration” (Aktion), “Light My Fire” (Burnis), “Co-Operation” (Foundars 15), “Let’s Have a Party” (Geraldo Pino), “Cold Fire” (Heads Funk), “Only You” (Steve Monite), “Sexy Thing” (Robo Arigo), “Happy Birthday To ‘U’” (Steve Black), “Don’t Stop the Music” (Sony Enang).

16 de dezembro de 2017

Anouar Brahem “Blue Maqams” (ECM, 2017)



O processo criativo de Anouar Brahem é algo velado. Era ele que mo dizia, há três anos, em Munique, enquanto passávamos os olhos por um complexo menu no bar do Hotel Vier Jahreszeiten Kempinski. Falávamos a propósito do prodigioso “Souvenance”, o seu oitavo álbum na ECM, e ele explicava-me que, a princípio, ao compor, não “vislumbrava um lugar para o Björn [Meyer, baixista] e o Klaus [Gesing, clarinetista]”, gente que consigo tocava desde 2008 e sem a qual não se imaginava agora o disco a passar. Mas andavam juntos em digressão e, sem que se soubesse, a comitiva começava a ser acompanhada pela frustração: “sentia uma enorme coesão” em concerto, prosseguia o tunisino, desejava que continuassem a trabalhar em conjunto e “pura e simplesmente não havia espaço para eles nesta música.” 

Assim de repente, prestando atenção à capa deste “Blue Maqams”, em que logo se vislumbram os nomes de Dave Holland, Jack DeJohnette e Django Bates, um trio de agendas com poucos tempos mortos, dir-se-ia que Brahem cedeu a essa crença vacilante no seu próprio grupo (que o pianista François Couturier normalmente completa) e que ao mesmo tempo procurou suprir a falta que sabe que o seu grupo lhe faz. Ou seja, que agiu com premeditação. No entanto, nada estará mais longe da verdade. Como ele conta em notas de apresentação: “Como de costume, comecei a pensar neste disco de forma muito confusa, deixando que as ideias até mim viessem sem condicionantes em termos de estilo, forma, instrumentação. Depois, sem dar por isso, foi-se aos poucos afirmando o desejo de misturar os sons do piano e do alaúde aliado à ambição de associar a essa frágil combinação instrumental uma efetiva secção rítmica de jazz.” São palavras que trazem à memória o extraordinário “Istikhbars and Improvisations”, de Mustapha Skandrini, de 1965, uma das primeiras gravações a provar que as modulações microtonais da música árabe se podiam expressar ao piano. Cerca de 50 anos depois, é como se o Magrebe entrasse no seu período azul.

Ron Miles “I Am A Man” (Yellowbird, 2017)


Ao fim de umas semanas a jogar à macaca com o calendário telefonei-lhe a avisar que havia ocorrido um imprevisto: o jornalista não podia ir para a frente com a entrevista à hora marcada (estávamos em 1998 e eu promovia por cá “Woman’s Day”, o seu segundo álbum na Gramavision). Ron Miles não se importou muito e, agradecendo a cortesia, aproveitou para fazer conversa. Perguntou pelo tempo em Lisboa – contou que em Denver, onde reside, tinham já caído os primeiros nevões e a descrição da vista da sua janela trouxe-me à ideia um corpo marcado por vitiligo, uma doença que se caracteriza pelo aparecimento de áreas de despigmentação na pele. Depois falou-me acerca do discreto Boulder Creative Music Ensemble ou de Bill Frisell – tinha gravado o invulgar “Quartet” com o guitarrista e agora tinha sido Bill a devolver-lhe o favor. Modesto, não procurou saber o que eu pensava do disco. Mas tinha andado a ouvir umas antologias de Clifford Brown e Kenny Dorham e devo ter-me referido aos dois, ou melhor, à impressão com que tinha ficado ao escutá-los: que, não obstante os caroáveis melismas de ambos, o seu recurso a intervalos sofisticados não prejudicava a fluidez no que tinham para dizer e que o fervor e a fleuma nas suas trompetes conseguiam surgir em pontos inesperados. “Isso é interessante”, comentou Miles. “Sabe que o Dorham era vocalista. Eu não sou, mas há certas qualidades no canto que tento transferir para o meu instrumento, sem deixar de ter presente uma coisa que o Ornette um dia me fez ver numa aula que tive com ele: que não podemos partir para uma improvisação em grupo pensando saber o que vai acontecer. E que aí tudo se torna possível.” 

Quase vinte anos depois, não se pode afirmar que Miles se tenha esquecido da lição. Quanto muito, a sua visão do assunto ficou ainda mais panorâmica – uma espécie de credo que dá mostras de ter vindo ao mundo para desacreditar os aforismos de um Thomas Carlyle, digamos, e deixar patente que o progresso se dá mais pela ação do coletivo do que do indivíduo. Consigo estão os estelares Brian Blade (bateria), Jason Moran (piano), Thomas Morgan (contrabaixo) e Frisell, claro, mas também todos os que lutaram contra a discriminação e a desigualdade (“I Am a Man” foi o lema dos funcionários dos serviços de Higiene Urbana da cidade de Memphis durante a famosa greve de 1968 que culminou no assassinato de Martin Luther King, Jr.). Trata-se, portanto, de uma belíssima reflexão sobre processos históricos e a construção da individualidade sob perspetiva moral. Nem poderia ser de outra maneira: as filhas de Ron chamam-se Honor e Justice.

8 de dezembro de 2017

Seong-Jin Cho: Debussy (Deutsche Grammophon, 2017)



Em 2014, com 19 anos, o sul-coreano Seong-Jin Cho cruzava diariamente a esplanade do Musée d’Orsay, em Paris, e sentia-se no centro do mundo. A justificá-lo, em formação, ao fundo da praça, as estátuas dos seis continentes, criadas para a Exposição Universal de 1878, com Europa e Ásia ao lado uma da outra: “[Entrava e] Chegava a passar meia hora, ali, sentado, a olhar para um dos nenúfares de Monet”, diz. Podia não parecer, mas tratava-se de uma visita de estudo. E a imagem que salta imediatamente à memória é a de Claude Debussy, em 1889, noutra Exposição Universal, a dedicar “horas muito produtivas à kampong [aldeia] javanesa, atento à polirritmia percussiva de um gamelão que dava mostras de ser inesgotável em matéria de combinações de timbres etéreos ou fulgurantes”, contava Robert Godet. “Ele também adorava arte japonesa”, prossegue Seong-Jin, num depoimento recolhido pela sua editora, “em que a perspetiva é tratada de uma maneira completamente diferente da ocidental e em que aquelas partes da tela deixadas em branco têm um significado importante – como as pausas na sua música”. 

Refere-se à palavra japonesa Ma (“intervalo”, “espaço”, “tempo”), o jovem pianista, cuja aplicação prática, um dia, foi sintetizada nas páginas de “Japan Architect” por Arata Isozaki nestes termos: “Ma é um alinhamento de sinais – um lugar vazio onde todo o tipo de fenómenos aparece, passa e desaparece.” Conforme lembrou Mallarmé, em cuja poesia Debussy tanto se inspirou: “Nomear um objeto equivale a suprimir três quartos do gozo de um poema… [Já] Sugeri-lo, é um sonho.” Esta forma alusiva, evocativa e simbólica de proceder guia Seong-Jin pelas seis peças de “Images”, por “Children’s Corner”, “Suite bergamasque” e “L’Isle joyeuse”, e atrasa os ponteiros do relógio para o tempo de Gieseking (gravada entre 1951 e 1955, a sua integral de Debussy foi reeditada este ano) ou, quiçá, para o de Benedetti Michelangeli, dois que honraram a ambição do compositor em escrever para um “piano sem martelos”, líquido, quase gasoso. E eis que retorna, esse Debussy, envolto em incensos e sedas perfumadas.