31 de dezembro de 2015

John Coltrane “A Love Supreme: The Complete Masters” (Impulse!, 2015)



Na região metropolitana de Nova Iorque, em Long Island, mais precisamente na área de Dix Hills, encontra-se Candlewood Path. É uma rua discreta, algo fechada sobre si mesma, indistinguível entre os milhares a que se assemelha. No verão cheira a erva miúda e no inverno a lenha queimada e só a respiração da interestatal lhe adia o coma profundo. Ou seja, é ideal para McMansions. Há coisa de dez anos, aliás, propôs-se demolir o 247, uma moradia rústica de piso térreo. A empreitada gorou-se e, hoje, numa placa, lê-se que, de 1964 a 1967, ano da sua morte, aí viveu John Coltrane, e que foi aí que compôs “A Love Supreme”. Alice, sua viúva, num livro que Ashley Kahn dedicou ao disco, conta que a casa tinha um anexo: “Raramente lá íamos, mas, no outono de 1964, o John começou a passar lá mais tempo. Levava lápis, cadernos, qualquer coisa para comer. Até que, um dia, apareceu com uma tamanha alegria estampada no rosto, uma paz e tranquilidade tais, que lhe pedi para me contar o que se tinha passado. Disse-me que tinha recebido de uma assentada a música que queria gravar. Que tinha tudo.” Com efeito, o LP é essa coisa rara na história, quando os factos reais da vida de muitos se parecem subitamente materializar nas intuições domésticas de um só. Esta edição, com takes inéditos da malograda sessão de dia 10 de dezembro (quando Coltrane, quiçá a duvidar do milagre da véspera, insistiu para que Archie Shepp e Art Davis se juntassem ao seu quarteto) só contribui para reforçar o que já se sabia: que o jazz nunca mais foi o mesmo porque a própria humanidade não podia permanecer como antes.

Holliger: Machaut-Transkriptionen (ECM, 2015)





Geneviève Strosser (va), Jürg Dähler (va), Muriel Cantoreggi (va), The Hilliard Ensemble


Em notas de apresentação, Heinz Holliger fala-nos de novas perspetivas. Refere-se, como é óbvio, à sua própria atividade enquanto compositor e ao impacto que nela teve o “estudo aprofundado” da obra de Guillaume de Machaut (1300-1377). Mais à frente no texto, quando faz referência a cada uma destas suas “Transcrições” (dispostas no CD de modo alternado com alguns dos modelos de que procedem, como “Biauté qui toutes autres pere” ou “Hoquetus David”), recorre a palavras como “atomização”, chegando a fazer alusão à “excitação de partículas” não tanto como ela é estudada pela física mas antes como surge na poesia de Celan (Partikelgestöber). Não explica que, mais tarde, Celan teve de tornar claro que esses versos eram em parte instigados pela memória de Hiroxima e escritos “em prol da humanidade e contra o esvaziar e o atomizar [dos seus valores].” Seja como for, o poema permanece útil para quem queira explicar algo do que aqui se passa. Por exemplo, que, no seu melhor, já não são bem os temas de Machaut e os de Holliger que estão eficazmente tecidos lado a lado mas sim outra coisa qualquer que entre eles se colocou, que os esgarçou e tornou a coser e de que mal conseguimos hoje entrever as costuras: 600 anos de cinzas. A ideia não é nova. Afinal, Machaut, por intermédio de Schoenberg ou Messiaen, havia chegado a Goeyvaerts, Boulez e Stockhausen. Mas a sua aplicação, é. Com clímax em “Complainte und Epilog”, não se pretende tanto conferir autoridade a um programa de música contemporânea por via da especulação historicista quanto fazer com que um tempo se dissolva no outro.

Arianna Savall, Petter Udland Johansen, Hirundo Maris: Il Viaggio D’amore (Carpe Diem, 2015)



Exige algum comprometimento com os aspetos mais sentimentais da celebração que propõe, mas, com efeito, a verdade é que este disco encerra com ‘Gracias a la Vida’, a canção que Violeta Parra terminou pouco antes de pôr um ponto final na sua existência física com um tiro na cabeça. Ou seja, num programa que vai liquefazendo relógios e ignorando fronteiras, da Península Ibérica ao Chile, da Itália à Noruega, da Áustria à Inglaterra, do Renascimento ao século XX, é como se Arianna Savall (voz e harpa), Petter Udland Johansen (voz e rabeca) e os demais músicos do ensemble Hirundo Maris, através de tamanha ambiguidade, viessem dizer que o amor é por excelência o palco de todas as contradições ou, quiçá, num derradeiro arroubo romântico, que com a morte não vem necessariamente o fim. Há aqui pelo menos uma canção que mais do que isso não diz – ou melhor, trata-se de uma adaptação, por Arianna, de um poema de Apollinaire (“L’adieu”) em que o narrador aspira à eternidade. Mas as visões sobre o amor que este CD propõe são mais variadas: há espaço para a traição (‘Rosa fresca’), para a sedução (‘Yo me soy la morenica’), para o incesto (‘La Dama d’Aragó’), para a rejeição (‘Si dolce è il tormento’, o famoso madrigal de Monteverdi), enfim, para a consumação (‘L’amour de moi’ e, ao que tudo indica, também o espinhoso ‘Heidenröslein’, de Schubert e Goethe, outro tanto não vem simbolizar). No entanto, cada perspetiva é em si mesmo absolutamente definitiva e completamente parcial. Lá está, só a trova de Parra se mostra capaz de conciliar contrários. A viagem só fica mais pungente por isso.

24 de dezembro de 2015

Igor Levit: Bach; Beethoven; Rzewski (Sony, 2015)



Ambicioso programa, este, livre de todos os complexos e atavismos, apesar de comprometido, e, quanto muito, a despertar o vago aroma daquela altura de arruadas e ruturas, quando o que cada um dava mostras de saber da sua consciência política parecia depender diretamente do que fazia com o sabor do seu corpo. O que é o mesmo que dizer que Igor Levit, pese embora a presumível serialização da sua tese, se situa agora no pleonástico domínio do extraordinariamente singular. Aliás, se tanto, peca o pianista por, a preceito, apontar a seta do tempo numa só direção: i.e., as “Variações Goldberg”, de Bach, estão no primeiro CD, as “Variações Diabelli”, de Beethoven, estão no segundo, e as 36 variações que Frederic Rzewski compôs a partir do ‘El pueblo unido jamás será vencido!’, escrito por Sergio Ortega e popularizado pelos Quilapayún, vêm no terceiro, como se fossem umas precursoras das outras. Quando é pela audição das obras no sentido contrário ao que aqui está – de uma ou de outra maneira são três horas bem passadas – que se comprova uma daquelas insólitas intuições de Borges: de que, por vezes, na arte, há factos recentes que influenciam outros que lhe são mais remotos. É o que se deduz de uma interrogação de Levit retirada às notas de apresentação deste disco: “Até que ponto posso ir sem deixar de permanecer preso à minha âncora?” Ou seja, ao dividir os átomos de cada conjunto de variações, além de pós-modernista, este é um registo moralista que não tem receio de investigar o óbvio ou de sondar o inacessível. Por sinal, uma condição inerente aos três. Inerente à própria vida.

Ibrahim Maalouf “Kalthoum” (Impulse!, 2015)



A citação é oportuna: “Quem alinhe as suas múltiplas pertenças, é imediatamente acusado de querer dissolver a sua identidade no caldo informe onde todas as cores se apagam.” Isto escreveu Amin Maalouf em “As Identidades Assassinas”, advertindo antecipadamente o seu sobrinho. Mas a resposta a semelhante imputação de culpa tem-na Ibrahim igualmente no livro do tio: “Aquilo que faz que eu seja eu e não outrem, é o facto de me encontrar na ombreira de dois países, de duas ou três línguas, de várias tradições culturais.” Dir-se-ia que nunca o demonstrou de modo tão convincente quanto neste “Kalthoum”, em que prossegue por uma via estreita entre dois precipícios, o da música clássica árabe e o do jazz. Vem homenagear uma das maiores vozes do século XX, Oum Kalthoum, a "Estrela do Oriente", a "Sexta Pirâmide do Egipto", a "Mãe dos Árabes", e tinha à sua disposição dezenas de canções imortais, nomeadamente aquelas de Ahmed Rami ou Riad El Soumbati. Mas ao se decidir pela adaptação de ‘Alf Layla Wa Layla’ (As Mil e Uma Noites), derivada de uma fase de declínio nas capacidades da cantora, mostra querer evocar o califado de Harun al-Rashid, porventura desagradado com as representações do mundo árabe no ocidente. Nesse sentido, o seu propósito é mais ideológico do que estético: mas a ideia vale ouro. Consigo estão Frank Woeste, Clarence Penn, Larry Grenadier e Mark Turner, capazes de tão depressa sugerir a contração neurótica da atualidade quão a sua infinita recessão até princípios de uma antiguidade incalculável. Como diz a canção: “E o que parecia um deserto revelou-se um jardim.”