12 de dezembro de 2015

Alex Gibney “Sinatra: All or Nothing at All” (DVD Universal, 2015) & Frank Sinatra “A Voice on Air: 1935-1955” (Sony, 2015)



Foi Aileen Mehle quem o revelou em primeira mão, a 24 de março de 1971, numa coluna que assinava sob pseudónimo (Suzy) e que inúmeras publicações norte-americanas difundiam um pouco por todo o país: “Sinatra vai fazer as coisas à sua maneira; reforma aos 55”. O recorte de imprensa pode ainda hoje ser consultado no site do “Chicago Tribune”: “Frank Sinatra, a estrela entre as estrelas, a voz que emocionou milhões, vencedor de um Óscar, retira-se do mundo do espetáculo aos 55 anos.” Se o texto parecia encomendado, é porque o foi. Aliás, no artigo, só a ostensiva alusão a ‘My Way’ no cabeçalho dá mostras de ter escapado à revisão do próprio Sinatra, já que, de resto, nada comprometia a modéstia do gesto que se vinha relatar. Principalmente quando se aproveitava o ensejo para anunciar um concerto de despedida com receitas a reverter para a caixa de previdência dos profissionais da indústria do entretenimento. Só depois vinham as declarações do cantor, necessariamente polidas pela humildade, agradecendo a generosidade do público ao longo de três décadas e confessando a forma privilegiada em que “pôde comprovar o vínculo que une homens e mulheres de todas as cores, credos, idades ou estatuto social; aquilo que a humanidade possui em comum, e que, talvez mais do que todas as outras, a linguagem da música consegue evocar.” O evangelismo da afirmação ficou imortalizado numa manchete da revista “Life” desse ano: “Sinatra Says Good-by and Amen”.

Como se sabe, e como era provável que se soubesse de antemão, a reforma iria durar pouco. Mas, não fosse o diabo tecê-las, a verdade é que ninguém poderia faltar ao apregoado concerto de despedida. Foi de tal modo que, beneficiando da complacência da plateia da primeira noite, Sinatra teve de o dividir em duas: a 12 de junho no Dorothy Chandler Pavilion e a 13 no Ahmanson Theater, espaços contíguos no Music Center de Los Angeles. A cerimónia teve o patrocínio da princesa Grace do Mónaco (que havia contracenado com Sinatra em “Alta Sociedade”), realização de Vincente Minnelli (que havia dirigido Sinatra em “Deus Sabe Quanto Amei”), e o seu programa era guarnecido com os nomes de Bob Hope, Barbra Streisand, Dean Martin, Sammy Davis Jr. ou Jack Lemmon. Sinatra escolheu pessoalmente os onze temas que iria cantar. A ideia era a da sessão de terapia coletiva, presume-se, para não dizer regressão coletiva, em que poria em revista a história da sua vida e, por conseguinte, a história pessoal de todos quanto o escutavam. Começou por ‘All or Nothing at All’, o seu primeiro êxito, e terminou com ‘Angel Eyes’, desviando-se do feixe de luz do holofote no momento exato em que entoava o derradeiro verso da canção, “Excuse me while I disappear”, capitulando no escuro como num drama de Shakespeare. Para muitos, esse alinhamento foi o mais próximo que esteve de redigir a sua autobiografia.

É, por isso, apropriado que “All or Nothing at All”, o documentário que Alex Gibney lhe consagrou neste ano de centenário, se permita eleger narrativamente esse concerto de despedida como fio condutor, ao qual torna uma e outra vez, quase sempre por via da catarse. O que é o mesmo que dizer que é por intermédio das canções que mais facilmente se tem acesso ao homem. É normal. Por um lado, porque, no fundo, foi o canto que fez de Sinatra uma personagem irresistível, e porque, nesse domínio, há vulgaridades que se vão repetindo ao longo da sua carreira, como aquela, paradigmática, de Gordon Jenkins (orquestrador de não menos exemplares álbuns de Sinatra como “Where Are You?” ou “September of My Years”), que proclamava que “quando o Frank canta uma canção, acredita totalmente nela”. Por outro, porque era por aí que dava vazão às suas mais ambíguas pulsões sem jamais abdicar da clareza e subtileza dos seus modos, e porque, inevitavelmente, muito daquilo que fazia quando não cantava servia para conjugar todo o tipo de resistências. Mas que figura pública com a sua longevidade – e logo uma tão apta a pôr-se em contacto com as mais profundas estruturas da existência moderna – não se vê em algum ponto da sua vida sobrecarregada de afetos e desafetos? O filme está assombrado por semelhantes inquietações.

“All or Nothing at All” goza de uma relação privilegiada com alguém que, de certa forma, se reputa como ‘biógrafo oficial’ (Charles Pignone, um dos seus produtores executivos e autor de “Sinatra 100”), o que lhe permitiu ter acesso a depoimentos de Nancy Barbato Sinatra (casada com Frank entre 1939 e 1951) e dos seus filhos (Nancy, Frank Jr. e Tina), mas não se opõe à passagem de correntes que sugerem uma versão menos convencional dos acontecimentos. Não obstante, no capítulo em que examina as ligações entre Sinatra e a Máfia deixa no ar mais perguntas que respostas. Por exemplo, ao contrário do que Mario Puzo popularizou em “O Padrinho”, não embarca na velha história de que Tommy Dorsey só o libertou das obrigações legais para com a sua orquestra quando recebeu a tal “proposta irrecusável” (reza a lenda, a nada eufemística pistola de Willie Moretti, de quem Sinatra era afilhado, apontada à cabeça), mas também se escusa a mostrar uma notícia da “Billboard” que dá conta da compra do contrato de Sinatra por Jules C. Stein, patrão da MCA. E é no mínimo curioso que dependa exclusivamente do que disse o cantor acerca da sua viagem de finais de 1946 a Cuba. Isto é, quem ignore que a Conferência de Havana, em que se reuniram os patrões das principais famílias do crime organizado – de Lucky Luciano e Frank Costello a Don Vito e Sam Giancana –, incluía um jantar de gala que tinha Sinatra como cabeça de cartaz corre seriamente o risco de ficar convencido de que tudo não passou de uma enorme coincidência.

Mas Gibney é menos púdico quando deixa recair a sua atenção sobre John F. Kennedy, aceitando factos que Tina Sinatra vem há muito tornando públicos acerca do papel que o seu pai desempenhou na aproximação dos Kennedy a Giancana por altura das eleições presidenciais de 1960. Também o episódio que determinou o rompimento definitivo entre os dois, em março de 1962, irrompe sem filtros. Resumindo: depois de Sinatra ter gasto uma fortuna a construir o que apelidou de Casa Branca ocidental na sua propriedade de Palm Springs, heliporto incluído, o sempre concupiscente Kennedy, pressionado pelo irmão, Bobby, transferiu à última da hora a projetada escapadinha de fim de semana com Sinatra para a casa de Bing Crosby. Republicano, sim, mas fundamentalmente limpo de associações criminosas e, mais significativamente, capaz de até aí conduzir Marilyn Monroe, com quem o presidente terá passado a noite. Ou seja, o documentário afiança a teoria de que foi a mágoa decorrente de tudo isto – da momentânea desclassificação de Sinatra da nova aristocracia do poder político – que o afastou do Partido Democrata e o levou até Reagan e Nixon. Está certo, mas não custava dizer que só em 1986, quando Kitty Kelley, persona non grata no seio do clã Sinatra, lançou “His Way: The Unauthorized Biography of Frank Sinatra”, veio o assunto mais insistentemente a lume.

Seja como for, o documentário nunca perde o fio à meada. Ao invés, a sua capacidade de seguir a par e passo a biografia de Sinatra sugere um conjunto de ideias imperturbável, como se, por osmose, do seu objeto tivesse absorvido alguma daquela singular serenidade. Como um enorme fresco, cá estão os anos formativos, entre guerras, marcados pela Grande Depressão, em que, apesar de tudo, aquele menino pálido e magro de Jersey, com a parte esquerda do rosto marcada pelos fórceps que o trouxeram ao mundo, se deixa fascinar pelas aptidões sociais da mãe, Natalina Garaventa, ao mesmo tempo que, porventura de maneira inconsciente, se permite atrair pela capacidade de introspeção do pai, Antonino. E aqui está igualmente o que tão bem se conhece: a participação no concurso de talentos de Edward Bowes, biscates em Nova Iorque, emissões da WNEW a partir da Rustic Cabin, aulas de elocução com John Quinlan, o namoro e casamento com Nancy, o convite para ingressar na orquestra de Harry James, e subsequentemente na de Dorsey, as gravações iniciais e o arranque da carreira a solo, a estreia no Paramount, a sua transformação em ídolo daquela legião de meninas de soquetes e saias compridas que esperavam por si à porta dos teatros, rúbricas na rádio, a mudança para Hollywood, filmes, casos com Marilyn Maxwell ou Lana Turner, o casamento com Ava Gardner (que o arruinou), o progressivo decréscimo da sua popularidade até que a atuação em “A Um Passo da Eternidade” lhe relança a carreira, a sequência milagrosa de álbuns na Capitol, a não menos prodigiosa série de namoradas (mesmo se acabava sempre por cantar ‘The Lady Is a Tramp’), a transferência para Las Vegas e a formação do Rat Pack (cuja fama perdurável passou por “Onze Homens e um Segredo”), a fundação da Reprise, a filantropia, o casamento com Mia Farrow, o encontro com Jobim e aquelas duas décadas finais na estrada, saltando de arena em arena, sucessivamente celebrado em vida, de que fica uma frase que disse a Pete Hamill, autor de “Why Sinatra Matters”: “Talvez saibamos menos das coisas à medida que envelhecemos”. Afligido pela demência e vítima de ataque cardíaco, faleceu a 14 de maio de 1998.

O livro de Hamil acaba de regressar aos escaparates, mas no mercado há mais duas mãos-cheias de edições, entre as quais se destacam “Sinatra” (para a mesinha do café, limitado a 1000 unidades e à venda por 1300 euros), “Sinatra’s Century”, de David Lehman, “Sinatra: The Photographs”, organizado por Andrew Howick, e, acima de tudo, “Sinatra: The Chairman”, de James Kaplan, que, somada ao volume que a precedeu (“Frank: The Voice”), se arrisca a tornar definitiva. Quanto a discos, são às dezenas as reedições, muitas delas em vinil, e as antologias, entre as quais se recomenda “Ultimate Sinatra” (4 CD, Universal), com registos entre 1939 e 1979, ou “Classic Sinatra: His Great Performances 1953-1962” (3 CD Lucky Stars/Distrijazz), concentrada, esta, no material da Capitol.

Mas é “A Voice On Air: 1935-1955”, extraída a emissões radiofónicas protagonizadas por Sinatra, com dezenas de inéditos e versões com orquestrações jamais publicadas, e que inclui participações de Nat King Cole, Benny Goodman, Doris Day ou Slim Gaillard, que se prova a peça que faltava neste puzzle. Dos pré-históricos Hoboken Four aos The Four Sharps, da bravia banda de James à aveludada orquestra de Dorsey, de transcrições de um programa como “Songs by Sinatra” às de “Frank Sinatra in Person”, eis o cantor no centro da vida familiar e cultural norte-americana. Através da sua audição, fica patente a gradual definição de um estilo tão destemido quão vulnerável, tão exuberante quão reservado. O fraseado de Sinatra, solto e simples, de uma imaginação interpretativa sem precedentes, tinha o sotaque do instrumentalismo do jazz, das suas inflexões e sensibilidades extremas. Nunca a divisão do ritmo de uma canção, que fazia flutuar, havia soado tão natural. Ele, após décadas de enfáticos tenores e de encerados barítonos desprovidos de emoção, com um domínio sobre a respiração a roçar o do mergulhador em apneia, veio amaciar as esquinas dos poemas, das melodias, dos timbres, conferindo dramatismo ao espectro integral de cada tema. A origem de tudo isto está nestas gravações, ainda que só a partir dos 40, em LP como “In the Wee Small Hours”, “Songs for Swingin’ Lovers!” ou “Only the Lonely” (todos com arranjos de Nelson Riddle) tivesse assumido proporções sacramentais. O mundo das artes a braços com o neorrealismo e Sinatra a cantar Porter, Gershwin, Berlin, Van Heusen, Hart, Cahn, Kern, Styne, Mercer ou Hammerstein, como quem diz que, fachada por fachada, preferia a do romance. 

Era costume terminar um espetáculo brindando à assistência: desejava a todos sorte e saúde, paz na terra, muito amor e carinho, e, invocando um velho cliché, fazia votos que chegassem aos 100 e que fosse a sua a última voz que ouvissem – tivessem todos essa sorte.

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