29 de fevereiro de 2020

Carla Bley Trio "Life Goes On" (ECM, 2020)

Isto, como milhões de pessoas fazem questão de repetir em coro, e em piloto automático, ao volante do automóvel, mesmo quando estão paradas no trânsito, cantavam já os Beatles: “Ob-la-di, Ob-la-da/ Life goes on, brah!” Exatamente: que a vida continua. O que não quer dizer que de vez em quando não se complique seriamente, claro. Que o diga Sir Paul McCartney: não só John, George e Ringo não morriam de amores pela cançoneta – o que explica que nem em Inglaterra nem nos EUA viesse a sair em single – como circulavam rumores pela imprensa britânica de que se estava perante um ato de apropriação cultural (o percussionista Jimmy Scott-Emuakpor jurava que sim). Agora, após doença e consequente cancelamento de concertos, inclusivamente em Portugal, é Carla Bley, em suíte, e não sem ironia, que recorre por sua vez à expressão: ‘Life Goes On’, ‘On’, ‘And On’, ‘And Then One Day’, lê-se. Seja como for, não terá ganho para o susto – e imagina-se o seu companheiro de longa data, o baixista Steve Swallow, a fazer contas à vida a partir de uns versos da poetisa israelita Raquel Chalfi: “O que significa ir para a cama com uma mulher de 21 anos/ Por oposição a ter de se levantar diariamente da cama sem uma mulher de 81”? Pois, é octogenária que Bley consegue um feito que não se imaginava já ao seu alcance: adicionar escritos ao cânone. 

Comparando, até, com colheitas vintage, dir-se-ia que contraria de modo exemplar a tendência para a hipérbole que lhe era tão característica, em obras algo perversas que, essas sim, tinham pilhas para durar e durar sem fim à vista. Era, na altura, como se cada gesto de efetiva exploração – o que, na verdade, e no seu melhor, era uma condição indispensável às suas composições – tivesse de ser concomitantemente acompanhado por outro de pura expiação. Aqui, com os judiciosos Swallow e Andy Sheppard, revela absoluto domínio emocional e intelectual sobre cada peça. De certa maneira, dá mostras de querer inverter o famoso aforismo do “ars longa, vita brevis”: para manter ao largo os imponderáveis da vida, quiçá, converte através da arte toda a experiência acumulada numa fórmula concentrada. Irrepreensivelmente em ‘Beautiful Telephones’ – inspirada por uma frase de Trump ao entrar na Sala Oval –, em que, não obstante estender o tapete a uma citação de “Marcha Fúnebre”, de Chopin, reúne em torno de si os fantasmas daqueles a que no momento certo chegou a prestar homenagem em notáveis atos de criação colectiva orientados por Hal Willner: de Nino Rota, Thelonious Monk e Kurt Weill, a que teriam de se acrescentar os de Satie e Charles Ives. É que, como cantou Carmen Miranda, “anunciaram e garantiram que o mundo ia se acabar”… E o mundo não se acabou.

22 de fevereiro de 2020

Ravel, Enescu, Ysaÿe, Prokofiev: Strangers in Paradise (Warner, 2019)

Aí em cima, na ficha, não dá para perceber. E, na capa, só à lupa. Mas, como se, por acaso, alguém – ou uma gata, que é geralmente o que me acontece – tivesse carregado no Caps Lock no momento exato da sua composição, dá-se no título deste CD por um assalto capitular que, na verdade, é em tudo programático: “Strangers in PARadISe”, lê-se. Isto é, contrariamente às expectativas, não estamos em Mercúrio, como no conto de Asimov, mas, sim, em Paris – seja como for, ouvindo o violino de Tishchenko, não há como não sacar o livro da prateleira, ir diretamente às últimas linhas e escrever: “Deu um pulo e ergueu-se lentamente no ar com uma liberdade que nunca sentira, e novamente deu um pulo, ao pousar, e correu, e saltou, e de novo correu, com um corpo que respondia perfeitamente a este mundo glorioso, a este paraíso em que finalmente se achava. Um estranho, tão longe e tão perdido, finalmente no paraíso.”

Frase que descreve o que se dá com o antropomorfizado Stradivarius da ucraniana no contacto com a “Sonata Nº 3” de Ysaÿe, com a “Sonata Nº 2” de Ravel, com a “Sonata Nº 3” de Enescu e com a “Sonata Nº 1” de Prokofiev. Pensando no instrumento, olhando bem para o que tinham acabado de compor, qualquer um deles poderia ter chegado à mesma conclusão que os protagonistas do conto, reagindo ao que viam: “Tem um mundo para o qual o seu novo corpo está perfeitamente adequado, em troca deste mundo ao qual o seu velho corpo não se ajustava de modo algum”. Os primeiros três em plenos années folles, com o jazz a desfibrilhar tudo em que tocava, incluindo o folclore, como no caso do romeno (e Tishchenko evoca-os com uma leveza rara, mas nunca menos que elétrica); o russo no pós-Guerra, longe da glória obtida na capital francesa, com o bafo de Estaline a colar-se-lhe à nuca e consciente de que tinha de importar para a sua obra algo que Asimov resumiu assim: “Temos de estudar padrões genéticos em ação, se nos quisermos entender, e são os padrões anormais e monstruosos que mais informações nos dão”. Aqui, até arrepia.

Losy: Note d’Oro (BIS, 2020)

Com cerca de 35 peças, e a rondar os 80 minutos, esta é, que eu saiba, a mais abrangente coleção jamais dedicada à belíssima obra para alaúde de Jan Antonín Losy – mais coisa menos coisa, reúne 1/5 da sua produção autenticada. Pouco mais do que se conhece de Kapsberger, por exemplo, um compositor de recursos infinitamente menores, mas, no entanto, muito aquém do que nos chegou de contemporâneos seus – e expoentes no género – como Weiss e Visée. Não será de estranhar, claro: afinal, o Sr. conde Johann Anton Losy von Losinthal tinha outras, seríssimas obrigações. Seja como for, dir-se-ia que a nenhuma delas se apegava tanto quanto a esta, para a posteridade assim descrita: “Deixava-se ficar na cama pelas manhãs a tocar um pequeno alaúde que tive o privilégio de escutar com frequência. Se lhe viesse à ideia algo que lhe agradava, anotava-o de imediato, arrumando o apontamento numa caixa guardada para o efeito. Após a hora do almoço, na saleta em que tinha o cravo, tocava violino. E é difícil descrever o prazer que Sua Graça extraía da música. Certas passagens satisfaziam-no de tal maneira, aliás, que as repetia uma e outra vez, aqui e ali prolongando uma dissonância que fazia questão de saborear até, por fim, exclamar ‘È una nota d’oro’!”

Isto foi Gottfried Heinrich Stölzel que escreveu, recordando o seu tempo de mestre-capela em Praga, à qual chegava acabadinho de vir de Itália, onde música e alaúde eram quase sinónimos (basta lembrar “Concerto”, de Caravaggio). Como tal, não se vislumbra alguém tão bem equipado para reconhecer o muito do estilo italiano que havia em Losy, embora, em rigor, o Sr. Conde nos tenha deixado ainda mais peças naquele estilo francês, tão em voga, de caráter improvisado, arpejos irregulares e contraponto pseudo-imitativo, em que se destacavam linhas melódicas ambíguas. Já uma certa predileção por motivos mourescos, para não dizer hispânicos, ficou, quiçá, por identificar – mas será impossível deixar de relacionar aquilo que se ouve na “Chacona em Fá maior”, digamos, com a chegada à Boémia, por casamento com Leopoldo I, de Margarida Teresa, infanta de Espanha (e, já agora, peça central em “As Meninas”, de Velázquez, na altura em que a Casa de Áustria se entretinha a jogar às damas com as cortes de Lisboa e Madrid). Como é óbvio, depois da Guerra dos Trinta Anos, longe do tempo de Rodolfo II, Praga já não é o que era – e, agora, quando nos salões dos seus palácios se pedia um slow, como a melancólica “Sarabanda em Fá maior”, de Losy, prima direita da ária de “Variações Goldberg”, de Bach, era à saudade desses anos dourados que se dava corpo.

15 de fevereiro de 2020

“Apala: Apala Groups in Nigeria 1967-1970” (Soul Jazz, 2020)

Não fosse, confesso, a própria Soul Jazz (que, em 2016, incluiu um par de temas de Haruna Ishola & His Apala Group em “Nigeria Freedom Sounds! Popular Music & The Birth of Independent Nigeria, 1960-1963 ”), e o mais perto que estava de encontrar a palavra Apala entre os discos na prateleira era em ‘Apalachicola, Fla.’, nas vozes de Bing Crosby e das Andrews Sisters – o que, à primeira vista, não terá rigorosamente nada que ver com esta história. “We're full of glee/ My buddies and me/ We're happy all day through// Black girls and boys/ Are so full of joys/ And that's why we say to you/ We're on our way/ To Apalachicola, Fla”, diziam eles, efetivamente, no distantíssimo 1947. Mas, na verdade, vá-se lá saber quantos desses “black girls and boys”, da canção, não descendiam diretamente de gente oriunda do Golfo da Guiné – apesar de essa condição não ter perdurado, o decreto de Carlos, o Enfeitiçado, a conceder alforria a escravos foragidos das Treze Colónias Britânicas que se fixassem na Florida e, ao abrigo da coroa espanhola, se convertessem ao catolicismo, levou à criação de inúmeros quilombos ao longo do rio Apalachicola.

Também na Nigéria de 1947, quando Ishola formou o seu conjunto, parecia a música Apala implicar uma rejeição do imperialismo britânico – recorrendo, sobretudo, a tambores de ampulheta de vários tamanhos, a idiofones de lamelas e a chocalhos, os seus praticantes nunca se poderiam confundir com aquela legião de instrumentistas de guitarra elétrica ou saxofone na mão que ditavam as modas em Lagos com os olhos postos na produção musical a Ocidente. Talvez por isso nunca tenham conseguido chegar aos mesmos mercados que William Onyeabor, Lijadu Sisters, Victor Olaiya, Segun Bucknor, Blo, Victor Uwaifo, Funkees, Ofege, Shina Williams, Tunji Oyelana e tantos outros, que, nas últimas duas décadas, conseguiram sair da sombra de Fela Kuti – ou, então, foi só, mesmo, porque os organizadores de compilações na Europa nunca deram por temas como ‘Apala Jazz Disco’ (1982), de Fatai Ayilara. Aqui, entre homens e mulheres como Ishola [na foto], Adebukonla Ajao, Rapheal Ajide, R. A. Tikalosoro, Adeleke Aremu, Kasumu Adio e Ayisatu Alabi, num alinhamento em que se dá, apenas, pela falta de Ayinla Omowura, resgata-se ao esquecimento quem, em plena Guerra do Biafra, através de cantos melismáticos em ritmo livre, se dedicava à preservação, proteção e promoção de um arcano conjunto de poderes que, como um amuleto, em cerimónias islâmicas que vão de partos e batizados a casamentos, aniversários e funerais, servia de amparo para a vida inteira.

Evan Parker/Paul Lytton “Collective Calls (Revisited) (Jubilee)” (Intakt, 2020)


Como é que se lê, em Levítico 25:10? “Santificareis o quinquagésimo ano, proclamando na vossa terra a liberdade de todos os que a habitam. Este ano será para vós um Jubileu: cada um de vós voltará à sua propriedade e à sua família.” Certo. Mas, pelos vistos, e como costumam dizer os ingleses, algo que é, também, mais fácil de dizer do que fazer. Talvez por isso, por estarem atentos aos cabeçalhos dos jornais, e decorridos que estão 50 anos desde a sua primeira atuação pública conjunta, tenham ido Parker e Lytton buscar inspiração a um livro de Elias Canetti que reporta a acontecimentos decorridos durante a Segunda Guerra Mundial e que inclui frases tão desconcertantes quanto esta: “Em pleno dia, olhava-se para o céu e seguiam-se os rastos dos aviões como um evento esportivo. Era tão excitante!” No original, chama-se “Party im Blitz” – e trata-se, segundo os seus editores brasileiros, que o colocaram no mercado com a designação de “Festa sob as Bombas”, de uma “colcha de retalhos social tecida com fina ironia, com seus nobres decadentes e vaidosos, artistas presunçosos, emigrados e refugiados sem tostão ora deprimidos ora eufóricos.” Não admira, na era de Boris, que lhes venha à memória – logo a eles, que sempre fizeram profissão de fé na abolição de fronteiras – e que trechos aí sacados sirvam agora para batizar os temas deste CD: de ‘A Little Perplexing’ e ‘Confused About England’ a ‘What Has it Become Entangled with Now?’ e ‘England Feels Very Remote to Me’. Que é, claro, o tipo de comentários que promoviam nas plateias de há 50 anos atrás – em notas de apresentação incluídas em “Three Other Stories (1971-1974)”, Martin Davidson recordava como “despertavam a ira das falanges mais conservadoras por recorrerem àquilo que era entendido como ruído” (Lytton, aliás, militava nos White Noise)! E como é bom perceber que tanto tempo depois de “Collective Calls (Urban) (Two Microphones)”, explorando as dinâmicas de sax tenor e bateria, insistem em pôr parênteses à frente daquilo a que coletivamente chamamos música!