1 de fevereiro de 2020

Kitgut Quartet “‘Tis Too Late To Be Wise” (Harmonia Mundi, 2020)


Na capa, a coberto da mata, como dríades, elas, como sátiros, eles, emissários dos antigos deuses da festa e da folia, da paz e da primavera, são os próprios membros do quarteto Kitgut que parecem cantar “In vain are our graces/ In vain are our eyes// In vain are our graces/ If love you despise// When age furrows faces/ ‘Tis too late to be wise”! Quando, num bosque encantado, criaturas sobrenaturais tentam levar o herói a desviar-se da sua missão e a dedicar-se aos prazeres da carne, trata-se de umas linhas tiradas à segunda cena do quarto ato de “Rei Artur”, de Henry Purcell, e servem de advertência a todos os que se habituaram a ver a coisa ao contrário: de que nunca é tarde para aprender. Pelo menos naquele sentido proverbial, de que o seguro morreu de velho, de que mais vale prevenir do que remediar, prudência do que ciência, etc., petrificado num amplamente citado “it’s never too late to be wise”, de “Robinson Crusoé”, em que Defoe colocava o seu protagonista a “alertar aqueles cujas vidas forem acometidas de incidentes tão extraordinários ou mesmo não tão extraordinários” quanto os seus “a não menosprezarem essas intimações secretas.”

Aqui, sem quaisquer acometimentos hermenêuticos, o Kitgut comete a indiscrição de engendrar um programa que vai de Matthew Locke (1621-1677) e John Blow (1649-1708) a Purcell (1659-1695), lá está, e Joseph Haydn (1732-1809), quando só o último entre eles é que efetivamente contribuiu (e de que maneira) para a sua literatura específica. Ou seja, Amandine Beyer, Naaman Sluchin, Josèphe Cottet e Frédéric Baldassare (uma formação de sonho) põem as setas do relógio a andar para trás e, no que diz respeito à datação convencional do quarteto de cordas, caso houvesse o equivalente ao carbono-14 para assuntos desta natureza, claro, deixam-se levar para um tempo que se prova mitológico, mais ainda que pré-histórico – daí, quiçá, este título, inspirado pelo que em “Rei Artur” trauteava um coro de ninfas e silvanos –, e atiram-se a um punhado de entreatos, à “Suíte Nº 2 para 4 Violas da Gamba”, de Locke, ou à “Fantasia a 4, Nº 8”, de Purcell, que cosem às facadas com o “Quarteto de Cordas, Op. 71, Nº 2”, de Haydn, composto pouco depois do austríaco ter feito arranjos de folclore escocês e galês para os seus editores britânicos. Teria, então, este disco eventualmente de ser feito? Não é tarde nem é cedo: em pleno Brexit, é agora mesmo.

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