É assim: “Brasil/ Esquece o mal que te consome/ Que
os filhos do Planeta Fome/ Não percam a esperança/ Em seu cantar/ Ó nêga!” Nada
a que Elza tenha dado voz em “Se Acaso Você Chegasse” (1960) ou “A Bossa Negra”
(1961). Trata-se, antes, de uns versos sacados ao samba-enredo “Elza Deus
Soares” com que, daqui a quinze dias, na Marquês de Sapucaí, a Mocidade
Independente de Padre Miguel vai homenagear a autora de “Planeta Fome” (2019). É
algo que vem na linha do seu mais recente tríptico de álbuns – que inclui,
ainda, “A Mulher do Fim do Mundo” (2015) e “Deus é Mulher” (2018) – e que, de
certa forma, como quem anda à cata de dados para pôr no martirológio, retoma o
que Elza havia ensaiado em “Do Cóccix até o Pescoço” (2002), quando, via Chico
Buarque, dizia: “Bambeia, cambaleia/ É dura na queda/ Custa a cair em si//
Largou família, bebeu veneno/ E vai morrer de rir// Vagueia, devaneia/ Já
apanhou à beça/ Mas para quem sabe olhar/ Flor também é ferida aberta/ E não se
vê chorar.” Dir-se-ia um expoente neste processo de construção de identidade que
a coloca em trânsito entre a resignação e a resiliência e que a toma ora por
vedeta (da rádio) ora por vilã (quando foi acusada de ter acabado com o
casamento de Garrincha, por exemplo), ora por vítima (de violência doméstica,
digamos) ora por vingadora (“Mil nações/ Moldaram minha cara// Minha voz/ Uso
pra dizer o que se cala”, avisa em ‘O que se Cala’, no seu penúltimo disco). Musicalmente,
era tudo muito mais interessante quando Elza se permitia ser tudo isso de uma só
vez, como nestas suas primeiras idas a estúdio – complementadas com singles do período e um punhado de temas
de “Sambossa” (1963) –, e, num dos momentos mais importantes da História da MPB
em termos performativos, fazia da sua catarreira uma catapulta capaz de
expetorar o nó na garganta com que ficava ao cantar ‘Mulata Assanhada’ e
‘Polegadas de Mulata’ e de pôr à vista de todos a repressão que os sectores mais
reacionários da sociedade a faziam à força engolir.
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