29 de janeiro de 2021

Cuba: Music and Revolution (Soul Jazz, 2020)

Em 2005, em declarações a “The Guardian”, Minerva Rodriguez Delgado, a responsável pela divisão internacional da Egrem – Empresa de Grabaciones y Ediciones Musicales, fazia jus ao nome (Minerva era a deusa romana das artes e do comércio) e, ignorando momentaneamente os ensinamentos de “O Capital”, assumia: “Temos de fazer dinheiro!” O contexto, por ocasião do seu 40º aniversário, era o do lançamento no Reino Unido de uma série de antologias da editora estatal cubana, decidida a provar que não tinha tanto bolor quanto as suas congéneres soviética (Melodiya), polaca (Polskie Nagrania), jugoslava (PGP RTB), checa (Supraphon), búlgara (Balkanton) ou romena (Electrecord). Fez-se o negócio, mas não se abandonou a órbita dos nomes que o “Buena Vista Social Club” consagrou – e só com “Nueva Vision: Latin Jazz & Soul from the Cuban Label Egrem”, em 2007, na Sonar Kollektiv, se esgravatou para lá da superfície, produzindo-se o único precedente digno desse nome de “Cuba: Music and Revolution – Culture Clash in Havana Cuba (Experiments in Latin Music 1975-1985, Vol. 1)”, suplemento fonográfico de um livro também organizado por Gilles Peterson e Stuart Baker e com um título igualmente quilométrico, “Cuba: Music and Revolution – Original Album Cover Art of Cuban Music (Record Sleeve Designs of Revolutionary Cuba 1959-90)”. No que concerne a música propriamente dita, em virtude do embargo norte-americano, trata-se do “período do isolacionismo”, mesmo se a presidência de Jimmy Carter tentou promover El Diálogo e se, em 1978, os Irakere tocaram no Carnegie Hall e a Orquesta Aragón no Lincoln Center, num concerto marcado por um atentado à bomba. Por outro lado, como a mais elementar das enciclopédias ilustra – e “The Rough Guide to Cuban Music”, de Philip Sweeney, logo salta à memória –, foi o instante em que “a vanguarda cubana fez a revolução que ninguém ouviu”, quando Irakere, Los Van Van, Grupo Monumental, Grupo de Experimentación Sonora del ICAIC, Emiliano Salvador e Juan-Pablo Torres viraram a música cubana do avesso, nem que fosse para provar o quão se diferenciava da salsa.

22 de janeiro de 2021

Handel: Suites Pour Clavecin (Mirare, 2020)

Há 300 anos, em Londres, dava-se nas páginas de “The Daily Courant” com o anúncio de que Handel se via obrigado a publicar “estas lições, para que o público não fosse exposto a informações incorretas, obtidas de modo fraudulento”. Parece um tweet de Donald Trump! Afinal, as pautas que começavam a circular na Holanda em 1720 eram fake news. Ou melhor, essas “Pièces à un & deux Clavecins composées par Mr. Hendel”, a que certamente se referia, eram, na realidade, edições piratas dos manuscritos que distribuía pelos seus alunos, com sequências de acordes e pouco mais. Era seu “dever”, defendia, “servir uma nação [a Inglaterra] que o agraciava com o mais generoso dos patrocínios”. Afinal, aí, após uma temporada passada na residência de James Brydges, 1º Duque de Chandos, e nem que para tal fosse necessário abrir o jogo e pôr ornatos e um pouquinho mais de carne naqueles esqueletos, o compositor de “Rinaldo” e futuro diretor artístico de opera seria na Royal Academy of Music teria que zelar pela sua reputação. Johann Sebastian Bach, por sinal, mostrar-se-ia agradecido: em Leipzig, meia dúzia de anos depois, a Allemande da sua “Partita Nº 2”, em Dó menor, citaria, nota a nota, o início da Allemande da “Suíte Nº3”, em Ré menor, de Handel. Mas, mais agradecida, ainda, ficaria aquela gente para a qual as suas melodias funcionavam como um feitiço e uma forma de aceder a um mundo que, mais que longínquo, parecia, muito pelo contrário, à beira de se concretizar: o Palácio de Buckingham, o Teatro da Rainha, Marlborough House, Hanover Square, Teatro de Haymarket, uma nova Londres que só Handel tornaria completa e merecedora da sensação de segurança, riqueza e privilégio que projetava e, sim, uma Londres em que não se apagassem por completo das fachadas as marcas daquela forma de vida caótica e desesperada, anterior à Restauração, que essa gente queria largar mas de que não se podia dar ao luxo de esquecer. Árias com a esperança de vida de uma borboleta – que voa até desaparecer, até se extinguir, dissolver e se tornar ar – e Fugas – com mão esquerda e direita a comportarem-se como se travassem uma luta há nos e este fosse o seu armistício – sucedem-se sem aviso, independentemente de normas, de escolas, de Telemann, Couperin ou Scarlatti. Um grito de liberdade que Hantaï honra como ninguém e que traz à memória o que Scarlatti, precisamente, terá dito um dia, em Veneza, num baile de máscaras, ao ouvir Handel a improvisar: “Só pode ser o famoso saxão, ou o diabo.”

8 de janeiro de 2021

Sonny Rollins “Rollins In Holland” (Resonance, 2020)

Após a salva de artilharia dada por Ornette Coleman em “The Shape of Jazz to Come” e “Change of the Century”, costumava dizer-se que 1959 tinha sido o ano em que o jazz morreu. Bom, Sonny Rollins, pelo menos, perdeu a fala. Na altura, ali, quando o sol bate e se firma, quem o quisesse encontrar teria de procurá-lo na ponte de Williamsburg, longe das salas de concerto e das lojas de discos, onde ensaiava tardes inteiras, mais ou menos perdido na multidão. Foi aí que no verão de 1961 com ele se cruzou Ralph Berton, cronista da “Metronome”, que escreveu: “Quando dei por aquele som, de repente, nem queria acreditar. Era tão improvável escutá-lo naquele sítio: o sopro de um mestre!” Na História, o período ficou conhecido como o da sua primeira sabática, que interrompeu com “The Bridge” (1962). Existiria uma segunda, maior, mais sujeita a especulações, correspondente à fase do eremita errante, no hinduísmo, e que o conduziria à Índia – em estúdio, o intervalo entre “East Broadway Run Down” (1966) e “Next Album” (1972). Mas, na prática, na primavera de 1967 era preciso ser-se assinante do “Melody Maker” para se dar com ele: “Não sei como é com intérpretes de música clássica, mas, no meu caso, um músico de jazz quando entra num clube é avaliado pelo modo em como faz ou não faz negócio. Isto é, se não estiver a ser bom para a casa, começam logo a olhar para ele de lado. Se houvesse maneira de tocar sem este tipo de pressão, se o jazz tivesse outro estatuto, já era uma ajuda.” No continente, promotores holandeses liam as suas palavras e faziam as malas para ir a correr buscá-lo – mas seria possível que o responsável por levar gravidade, força de atração, perspetiva, espaço e tempo a um ponto que nem Einstein equacionou andasse por Inglaterra a tocar com Ronnie Scott, Stan Tracey, Tony Oxley e Dave Green?

Nos Países Baixos, em 1967, poucos músicos seriam tão admirados quanto Rollins – um baterista como Han Bennink, por exemplo, saberia de cor o que, a seu lado, haviam feito Max Roach em “Saxophone Colossus” (1957), Elvin Jones em “A Night at the ‘Village Vanguard’” (1957) ou Philly Joe Jones em “Newk’s Time” (1959), e, face a Doug Watkins, Wilbur Ware ou Oscar Pettiford, o mesmo se aplicaria a um contrabaixista da estirpe de Ruud Jacobs. De modo crucial, sabiam igualmente o que o saxofonista fazia a bateristas e contrabaixistas como eles: “O Sonny tinha um timing tão impecável, uma noção rítmica de tal forma aprimorada, que tocar com ele era como que andar de elevador. Levava-nos onde fosse preciso, sem esforço algum”, adiantou Bennink a Aidan Levy, o biógrafo de Rollins. Por seu turno, Jacobs, na mesmíssima conversa (em julho de 2018, após a descoberta das presentes gravações), explicava-se assim: “Estávamos nervosos. Era normal. Mas mal o Sonny começou a tocar senti como que um peso a sair-me de cima. E só pensava: Mas que raio está a acontecer? Pois, a verdade é que a música seguia pelo próprio pé.” De súbito, para um punhado de sessões, sem um único ensaio, aparecia-lhes à frente o Rollins de “Freedom Suite” (1958) ou “Our Man in Jazz” (1962), aquele que acendia a lareira com standards mas que quando já não tinha lenha para queimar começava a partir a mobília aos bocados só para manter a chama viva – aquele que, a propósito destas atuações, no livreto, lembra que “o jazz é uma tentativa de chegar ao desconhecido, de olhar para o abismo, de estabelecer relações espontâneas, intuitivas, honestas, beatíficas… Que é o sítio onde vive, ligeiramente mais além.” Sabe bem do que fala – afinal, passou a vida inteira a construir a ponte para lá chegar.