25 de julho de 2015

Sibelius: The Symphonies (Sony, 2015)



Mal havia Jonathan Cott atravessado a soleira da porta e logo o maestro lhe puxava o tapete: “Aviso já que não possuo orquestras preferidas, compositores preferidos, sinfonias preferidas, tipos de comida preferida, formas de sexo preferido… Por isso não me faça esse tipo de perguntas.” Estavam em Fairfield, no Connecticut, aí a uma hora de carro a norte de Nova Iorque. Era o 20 de novembro de 1989 e um vento gelado arrastava a noite pelos cabelos. Bernstein tinha menos de um ano de vida e talvez o soubesse. Pelo menos havia repetido inúmeras vezes que se comportava como se assim fosse. “Entretanto, ainda falta um par de horas para o jantar estar pronto”, prossegue: “Importa-se que sigamos para o meu estúdio e que ouçamos uma gravação da primeira sinfonia de Sibelius que fiz há uns 20 anos? É suposto interpretá-la daqui a uns meses com a Filarmónica de Viena e há muito que não a ouço”. O serão viria a ser dado à estampa como “Dinner with Lenny” e o relato dessa sessão de escuta contém quase tudo o que se precisa de saber acerca da relação do norte-americano com o finlandês: “Olha, miúdo! Este é o tema rabínico… Ali é Beethoven… Tens aqui Tchaikovsky – de ‘O Lago dos Cisnes’ – e vem já aí Borodin e Mussorgsky… Algum Grieg (mas melhor que Grieg)… E isto é Sibelius – ouve bem, isto é inconfundivelmente Sibelius.” Estava enganado, claro. Pegando nas suas palavras, tratava-se de um Sibelius melhor do que Sibelius. E já disso se desconfiava por alturas desta integral sinfónica, registada entre 1961 e 1967. Agora, quando o compositor faria 150 anos, confirma-o esta remasterização.

Xanadu Master Edition Series (Elemental, 2015)


[Albert Heath “Kwanza (The First)”; Barry Harris “Plays Tadd Dameron”; Jimmy Heath “Picture of Heath”; Al Cohn & Jimmy Rowles “Heavy Love”; Sam Most “From the Attic of My Mind”; Al Cohn, Billy Mitchell, Dolo Coker, Leroy Vinnegar, Frank Butler “Night Flight to Dakar” + “Xanadu in Africa”]
 
Dentro da cinta murada de Xanadu, segundo Marco Polo, um faustoso palácio de mármore envolvia-se em mantos frondosos e lençóis de água fresca. Recheada de riquezas, era a capital de verão de Kublai Khan e o mais literal dos modelos históricos para quem crê que a casa de um homem é o seu castelo. De modo crucial, para Don Schlitten, também assim que se chamava a mansão de Charles Foster Kane em “O Mundo a Seus Pés”, de Orson Welles. “Por isso, tem sido um nome que associamos à beleza artística e à felicidade”, diz agora o produtor a Zev Feldman, da Elemental, lembrando o batismo da empresa que fundou em meados dos anos 70 e, de certa maneira, abençoando a corrente operação de resgate. Porque a verdade é que parte deste património estava em risco de se perder. Aliás, sem entrar em pormenores, Feldman conta como muitas das matrizes fonográficas e fotográficas da editora se destruíram à passagem do furacão Sandy, em 2012.

Era uma iniciativa há muito devida. Afinal, no mercado discográfico norte-americano do período, a par de contemporâneas como a Mainstream ou a Muse – com a qual Schlitten colaborou –, a Xanadu revelou-se um destino fundamental para o jazz que fez a creche no bebop. De todas, pese embora Peter Sprague, foi até a que menos pôs o pé no esoterismo e a que mais resistiu a modas, com Sam Noto, Sonny Criss, Al Cohn, Charles McPherson, Jimmy Raney, Barry Harris ou Sam Most firmando-lhe a reputação. O flautista, por exemplo, conforme confessava em “Sam Most, Jazz Flutist”, um documentário de 2001, tinha já “caído em esquecimento”. Só de originais, “From the Attic of My Mind”, de 1978, é um exponencial exercício de controlo idiomático. No filme declarava ter telefonado a Schlitten averiguando acerca da disponibilidade em CD destes discos, tendo-lhe respondido o produtor: “Vivamos nós o suficiente para o ver”.

Como Most, também Al Cohn e Jimmy Rowles se foram antes da reedição de “Heavy Love”, uma das pérolas do catálogo. Se “As Cidades Invisíveis”, de Italo Calvino, um livro baseado nas conversas entre Polo e Khan, representa em diálogo a arquitetura da imaginação, estes duetos de 1977 não fazem por menos. Com a medida certa de escuro e a dose exata de claro, outro clássico na Xanadu é a investida de Barry Harris na dameronia, de 1975, cumpriam-se então dez anos sobre a morte do dedicatário. Trata-se de uma arte em que tudo se transforma, afirmava Jimmy Heath. O seu “Picture of Heath”, de 1975, é disso mesmo um retrato, ao regressar ao passado e ao incluir um antitético mas não menos holístico ‘Body and Soul’, em que a parte do corpo é tocada ao saxofone soprano e a da alma no tenor. “Kwanza”, do caçula dos Heath, em 1973, narrava uma estória dentro de outra e tinha a mente em África, ainda que “Tootie” tornasse de uma temporada europeia. Até solo africano conduziu Schlitten uma comitiva em 1980, resultando daí um par de álbuns que neste lote se incluem por razões puramente simbólicas. É longo o caminho para Xanadu. Venham as próximas paragens.

18 de julho de 2015

Sugestões de verão




Florian Fricke/Popol Vuh “Kailash” (Soul Jazz, 2015)
No sopé do ‘Trono dos Deuses’, no Tibete, peregrinos de olhos avermelhados ajoelham-se junto a pequenos retábulos e perfumam-se com incensos. Como fazia nos filmes de Herzog, ao barro humano colando-se como um amuleto, a música de Fricke acompanha cada ritual até se deixar de perceber quem molda o quê.
 


Stephan Micus “Nomad Songs” (ECM, 2015)
Este CD possui uma citação de “O Profeta”, de Khalil Gibran, retirada do capítulo ‘Sobre as Casas’. Mas quem para ele parta com o Chatwin de “O Canto Nómada” em mente também não se deverá perder pelo caminho. Pois a verdade é que, como os escritores, Micus cartografa um espaço que conduz apenas a si.



Joe Lovano & Dave Douglas “Sound Prints: Live At the Monterey Jazz Festival” (Blue Note, 2015)
Com Lawrence Fields, Linda Oh e Joey Baron, Lovano e Douglas estreiam em disco ‘Destination Unknown’ e ‘To Sail Beyond the Sunset’, duas composições que, como quem não quer a coisa, Wayne Shorter lhes enfiou debaixo do braço. Cada um dos seus solos é uma pegada deixada na estrada que leva ao paraíso.

Charlie Haden & Gonzalo Rubalcaba “Tokyo Adagio” (Impulse!, 2015)
Começa por ‘En la orilla del mundo’, e contrabaixista e pianista fazem como os versos da canção, a cada passo tingindo de púrpura o seu destino. Em Tóquio, há dez anos, transformaram o palco do Blue Note num berço, acalentando passado e futuro. Haden guardou a gravação e quis deixá-la em testamento.


111 The Piano – Legendary Recordings (Deutsche Grammophon, 2015)
Expandindo qualquer possibilidade nestes longos dias de estio, eis o Barenboim de “Ao Luar”, o Michelangeli de “Imagens”, o Zimerman dos “Prelúdios”, o Pollini dos “Estudos”, o Gilels de “Peças Líricas” ou a João Pires dos “Noturnos”. Com pianistas assim, falar em compositores até parece despropositado.

“El Sistema 40 – A Celebration” (Deustche Grammophon, 2015)
Dir-se-ia que tocam como se a sua vida dependesse disso, mas a verdade é que nunca deveria ser de outra maneira. Celebrando 40 anos do sistema venezuelano de administração da formação musical, eis o mais transformativo – Dvorák, Ginastera, Beethoven – nas mãos da orquestra e do quarteto Simón Bolívar.

“The Bach Recordings” (L’Oiseau – Lyre, 2015)
Tal como há quem à mesa só coma fruta da época, também houve quem, na música, apenas tocasse com instrumentos de época. Hogwood foi um expoente da tendência – ora retrospetiva, ora prospetiva – e os recursos de que se serviu na linhagem dos Bach permanecem intrigantes e exemplarmente reconstitutivos.


 “The Decca Sound – Mono Years (1944-1956)” (Decca, 2015)
São gravações que mantêm uma surpreendente profundidade e uma inesperada transparência. Ouvi-las é como passar uma tarde de verão em torno de um velho álbum de retratos a descobrir segredos no que se julga saber de cor: o Stravinsky de Ansermet, o Mozart de Curzon, o Bach de Fournier, o Beethoven de Gulda.

11 de julho de 2015

Steve Coleman and The Council of Balance “Synovial Joints” (Pi Recordings, 2015)



O chorrilho de distinções institucionais dos últimos meses (prémio Artista e prémio Impacto da Fundação Doris Duke; subsídio do New Music USA; bolsa Guggenheim; subvenção Génio da Fundação MacArthur) elevou definitivamente a cotação de Steve Coleman, a ponto deste “Synovial Joints” estar a ser recebido por membros da imprensa norte-americana como um acontecimento com traços de ineditismo. Ter-lhes-á faltado a capacidade de precisar a atividade do saxofonista durante uns anos, só pode. Pois de outro modo não se explica o pouco que têm falado de “Genesis”, o álbum que a BMG francesa editou em março de 1998 e que já na altura Coleman atribuía ao The Council of Balance (há entre a formação atual e a de outrora, aliás, dois elementos em comum: o percussionista Ramón García Pérez e o trombonista Tim Albright). Dessa forma, por exemplo, não se espantariam com o tanto de díspar que agora correlaciona (música improvisada, música orquestral, tipologias de músicas tradicionais, etc), embora Coleman prefira certamente a interpretação de que está apenas a pôr a nu aqueles nós mais profundos que sob a superfície de todas as coisas se ocultam. Ainda não é desta que a parte mais visível das suas criações se livra do borboto do hermetismo (o disco cruza referências a articulações sinoviais com monofonia subsariana ou druidismo celta com egiptologia). No entanto, talvez seja verdade, sim, que a sua produção nunca se adequou tão bem à sua inventividade como aqui. Ou que, à frente de uma vintena de músicos, jamais empregou semelhantes meios próprios para provar o quão dispensa métodos alheios.

Leguizamón: El Cuchi Bien Temperado (ECM, 2015)



A Gustavo “El Cuchi” Leguizamón (1917-2000), docente, poeta, compositor e famoso tribuno argentino, devem-se criações tão indecentemente idiomáticas quanto ‘Chacarera del expediente’, com a figura do comissário de polícia corrupto, do prisioneiro inocente e do advogado negligente numa conversa tão surda que nem Deus a ouve. Ou ‘Coplas de Tata Dios’, também essa, entre outras, denunciando a tirania do messianismo religioso. Estão ambas aqui, embora à primeira vista descontextualizadas. Afinal, o guitarrista Pablo Márquez dispensa a palavra. Mas, tal como fez há uns anos Carlos Martínez com originais de Atahualpa Yupanqui, a verdade é que nem por isso deixa de prosseguir por sulcos abertos pelo buril do verbo. Dir-se-ia uma atitude herdada da sala de aulas: aos 13 anos, Márquez teve Leguizamón como professor de História sem por um segundo suspeitar que se tratava do autor de tantas das suas zambas preferidas; quando finalmente o descobriu, terá sido como se nunca o tivesse ignorado, tão indistinguíveis lhe pareceram então pedagogia e poesia. De igual modo crê agora na mensagem sem a muleta da métrica. É um gesto de independência que o homenageado apreciaria, e um que lhe permite prescindir de um programa que, sob outra perspetiva, teria forçosamente de incluir canções como ‘Balderrama’, ‘La pomeña’, ‘La arenosa’, ‘Chacarera del Chacho’ ou ‘Lloraré’, daquelas que se colaram ao longo dos anos à voz de Mercedes Sosa, por exemplo. Mas, melhor ainda só mesmo um pantagruélico título que, evocando o Bach de “O Cravo Bem Temperado”, se pode traduzir por “O Porco Bem Temperado”.