16 de abril de 2021

Desprez: Le Septiesme Livre De Chansons (Ricercar, 2021)

Há 500 anos, quando Josquin Desprez morreu, foi como se a própria música tivesse perdido a sua unidade orgânica. “Vamos evocar, ó Musas, os amores de Josquin”, escreveu Jacquet de Mântua, em “Dum vastos Adriae fluctus”, antes de mergulhar a pena no sangue do seu dedicatário, cujo cadáver dava mostras de querer a todo o custo reanimar. Em “Musae Jovis”, Nicolas Gombert lamenta esta “Cruel e perversa morte/ Que priva templos e cortes de pronúncias aprazíveis”, antes de exortar as musas a homenagearem com uma coroa de louros Josquin, o “Príncipe dos Músicos”. E, em ‘O mors inevitabilis’, Jerónimo Vinders é ainda mais direto: “Por isso, diz, ó Músico: ‘Paz à tua alma, Ámen.’” A fama de Josquin era tal, aliás, que, em 1545, quando a gráfica de Tylman Susato deu à estampa este “Septiesme Livre de Chansons” estava, também, a produzir algo de inédito: um volume inteiramente consagrado à obra de um falecido compositor em que repercutia, em adenda, nas peças de Gombert e Vinders, o impacto da sua própria morte. Não admira que na capa deste extraordinário CD surja “Retrato de um Músico”, de Leonardo da Vinci, como quem diz que ninguém levaria a mal se o pronome indefinido passasse a pessoal e se viesse aqui representar o músico. Ilustra-o uma anedota: em 1515, mais coisa, menos coisa, pasmado, Adrian Willaert dá com o coro da capela papal, em Roma, a interpretar um moteto seu, “Verbum bonum et suave”; mas terá ficado de boca aberta ao perceber que o coro atribuía a autoria do moteto a Desprez e que se recusava a continuar a cantá-lo quando o equívoco se esclareceu. Não seria um caso isolado – e, dada a quantidade de obras que lhe eram amiúde imputadas, em 1540, o editor alemão Georg Forster foi obrigado a reconhecer que, “agora que está morto, Josquin edita mais do que quando estava vivo!”. O que permitiu, de certa forma, delapidar o cânone: ou seja, têm vindo a emagrecer com o passar do tempo aqueles primeiros, monumentalíssimos volumes que pioneiros na edição de partituras em prensa móvel, como Ottaviano Petrucci (gente praticamente contemporânea da Bíblia de Gutenberg, portanto), haviam dedicado à obra de Desprez. Porque tem vindo a ser abandonada a incongruência interpretativa que em virtude desse gigantesco escopo o acompanhava como uma rémora, torna-se igualmente possível um disco tão fiel, com Dominique Visse a tornar o texto hipersensível sem borrar as linhas do caderno, nos temas profanos, e a adoçar a polifonia renascentista sem engrossar o fluxo harmónico em que se agita, nos sagrados. O “Príncipe dos Músicos” não merecia outra coisa.

1 de abril de 2021

New York Polyphony “And The Sun Darkened” (BIS, 2020)

Chama-se “And The Sun Darkened”, apenas porque et sol obscuravit pareceria demasiadamente pretensioso, calculo. Mas é isso, exatamente, o que se escuta em “Ofício da Paixão”, de Loyset Compère (c. 1445-1518), quando, após a punção do flanco de Jesus, se conta como “a terra tremeu” e “a escuridão caiu sobre o mundo” – está nos Evangelhos. Nas vozes de Christopher Herbert, Steven Wilson, Geoffrey Williams e Craig Phillips (o New York Polyphony), a personagem ganha tridimensionalidade – é derelictus, traditus, venditus, afflictus, além de pungido com uma coroa de espinhos e pregado a uma cruz, claro, mas, se isto fosse um filme, era como se soubéssemos de antemão da sequela. Nessa perspetiva, não se imagina melhor banda sonora para a Páscoa: genialmente programado, o disco abre com Compère, segue para Josquin Desprez (c. 1450-1521), salta até aos nossos dias com Andrew Smith (1970), recua mais 500 anos até Adrian Willaert (c. 1490-1562) e, antes de uma derradeira pancada no Condensador de Fluxo, como no DeLorean de “Regresso ao Futuro”, passa por Cyrillus Kreek (1889-1962) e Pierre de la Rue (1452-1518). A metáfora é tão clara que nem era preciso acabar num apelo à imortalidade: “Quit vitam sine termino nobis donet.”

Ou seja, mais uma vez, através do seu ato primário, evoca-se o ministério de Jesus na Terra – vencer a morte com a sua morte e de certo modo glorificar e libertar a humanidade ao avocar as suas fraquezas – para servir os oprimidos. Gente de hoje, de ontem e, presumivelmente, de amanhã, que se vê reduzida à primeira pessoa, tal o desamparo: “In te spero, in te confido”, ouve-se, com os agudos no céu e os graves no inferno, em “Tu és o Refúgio dos Pobres” (Desprez); “Tu es Jesus, pax et protectio”, conclui-se, em total estado de penúria, em “Cruz Triunfante” (Compère); “Todos os que me vêem troçam de mim”, desabafa quem enfrenta a agonia, sem valimento, em “Salmo 22” (Kreek). Porque, através de um hino de Tomás de Aquino, o diz De La Rue, não precisa o New York Polyphony de o afirmar: “Oprimem-nos guerras hostis/ Dá-nos força, dá-nos ajuda”, isto é, seja agora, seja há 500 anos, cerca-nos a morte. Como tal, a peça central da gravação é “Salmo 55”, de Smith, composta expressamente para este grupo e, quase apetece dizer, para este tempo de pandemia: há temor, tremor e traição, sim, mas a acompanhar a frase “Oxalá tivesse eu asas como a pomba” há igualmente um simplíssimo motivo de duas notas pronto a reforçar o poder da imaginação. Aí, nesse refúgio para o qual partiria a voar, poderia enfim o salmista desfazer os seus traumas e as suas angústias. Nós também: enquanto a terra treme, é só deixarmo-nos estar quietos num canto com este disco a tocar.