Ou seja, mais uma vez, através do seu ato primário, evoca-se o ministério de Jesus na Terra – vencer a morte com a sua morte e de certo modo glorificar e libertar a humanidade ao avocar as suas fraquezas – para servir os oprimidos. Gente de hoje, de ontem e, presumivelmente, de amanhã, que se vê reduzida à primeira pessoa, tal o desamparo: “In te spero, in te confido”, ouve-se, com os agudos no céu e os graves no inferno, em “Tu és o Refúgio dos Pobres” (Desprez); “Tu es Jesus, pax et protectio”, conclui-se, em total estado de penúria, em “Cruz Triunfante” (Compère); “Todos os que me vêem troçam de mim”, desabafa quem enfrenta a agonia, sem valimento, em “Salmo 22” (Kreek). Porque, através de um hino de Tomás de Aquino, o diz De La Rue, não precisa o New York Polyphony de o afirmar: “Oprimem-nos guerras hostis/ Dá-nos força, dá-nos ajuda”, isto é, seja agora, seja há 500 anos, cerca-nos a morte. Como tal, a peça central da gravação é “Salmo 55”, de Smith, composta expressamente para este grupo e, quase apetece dizer, para este tempo de pandemia: há temor, tremor e traição, sim, mas a acompanhar a frase “Oxalá tivesse eu asas como a pomba” há igualmente um simplíssimo motivo de duas notas pronto a reforçar o poder da imaginação. Aí, nesse refúgio para o qual partiria a voar, poderia enfim o salmista desfazer os seus traumas e as suas angústias. Nós também: enquanto a terra treme, é só deixarmo-nos estar quietos num canto com este disco a tocar.
Textos publicados no semanário português Expresso/ Articles published on the Portuguese weekly Expresso
1 de abril de 2021
New York Polyphony “And The Sun Darkened” (BIS, 2020)
Chama-se “And The Sun Darkened”, apenas porque et sol obscuravit pareceria demasiadamente
pretensioso, calculo. Mas é isso, exatamente, o que se escuta em “Ofício da
Paixão”, de Loyset Compère (c. 1445-1518), quando, após a punção do flanco de
Jesus, se conta como “a terra tremeu” e “a escuridão caiu sobre o mundo” – está
nos Evangelhos. Nas vozes de Christopher Herbert, Steven Wilson, Geoffrey
Williams e Craig Phillips (o New York Polyphony), a personagem ganha
tridimensionalidade – é derelictus, traditus, venditus, afflictus, além
de pungido com uma coroa de espinhos e pregado a uma cruz, claro, mas, se isto
fosse um filme, era como se soubéssemos de antemão da sequela. Nessa
perspetiva, não se imagina melhor banda sonora para a Páscoa: genialmente
programado, o disco abre com Compère, segue para Josquin Desprez (c.
1450-1521), salta até aos nossos dias com Andrew Smith (1970), recua mais 500
anos até Adrian Willaert (c. 1490-1562) e, antes de uma derradeira pancada no
Condensador de Fluxo, como no DeLorean de “Regresso ao Futuro”, passa por Cyrillus
Kreek (1889-1962) e Pierre de la Rue (1452-1518). A metáfora é tão clara que
nem era preciso acabar num apelo à imortalidade: “Quit vitam sine termino nobis
donet.”
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