22 de fevereiro de 2014

RED Trio “Rebento” (NoBusiness, 2013)



Surge inchado por esmero concetual, este “Rebento”. Afinal, sucede na discografia do RED Trio o seu sacramento a essoutro que se traduziria por caule – “Stem”, lançado em 2012. Por isso, à primeira vista, suspeita-se vir tratar de crescimento. Por outro lado, e apesar de alguma ressonância verbal se incutir assim no título que os agrupa, já o batismo dos seus constituintes contesta a presunção: ‘Carne’, ‘Para’, ‘Canhão’, nem mais nem menos, três temas deste modo dispostos e designados, dois no Lado A do LP, o último no Lado B, ainda que à versão digital do álbum, perturbando o hexassílabo, se acrescente ‘Mono’, sinóptico registo de uma atuação no festival Sines em Jazz em que se esculpe exemplarmente o extenso vocabulário do grupo. Há nisto uma cedência a modas – ou, pelo menos, uma premeditação – que, na realidade, não compromete para além da medida a experiência daquilo em que, também, nada há de casual. Não sendo formalmente invulgares, as dinâmicas nesta música possuem uma surpreendente expressividade; e, amiúde, testemunho de uma intrigante inteligência rítmica que dispensa esquematismos, revelam-se aqui pontos de convergência cuja narrativa é particularmente sedutora. Dir-se-ia que Rodrigo (piano), Hernâni (contrabaixo) e Gabriel (bateria) – não obstante privilegiarem gestos sutis – dramatizam continuamente as proporções do triângulo em que se organizam. E, do claustrofóbico intimismo a uma profundidade tonal quase sinfónica, embora invariavelmente nebulosa, instantes há em que se esfuma a categoria da improvisação de que se socorrem – ou, lá está, em que essas táticas servem apenas para que venha o trio noutro sítio qualquer a crescer, o tal rebento a florescer.

Bach: Goldberg Variations (Nonesuch, 2013) & Beethoven: Diabelli-Variationen (ECM, 2013)



 Jeremy Denk
András Schiff
Aqui, mais assustador que o vulto da simultaneidade só o da abreviação. Culpe-se Glenn Gould, que, embora adiantado, logo à primeira preconizou umas Goldberg para a era do Twitter. Porque nada justifica que se disponibilizem estas variações avulso em lojas digitais. De que serve, na formulação de Landowska, possuir a “pérola negra” de Bach – variação nº25 – se não para entendê-la, conforme caracterização de Denk, como “um oásis de tristeza num vasto deserto de felicidade”? E como absorver o impacto da vigésima das Diabelli, e a inquietação que deriva dessa insólita progressão harmónica, senão pelo confronto com o formalismo que a precede? Não espantará que um dia venha alguém pintar os “Concertos de Brandeburgo” à luz da biografia de Karlheinz Brandenburg, teórico do MP3. É que nesta música acerca de música a conjuntura é tudo. E Denk, nessa medida, é restaurativo. Aliás, em tempos recentes só Angela Hewitt possuiu aproximada visão das Goldberg: reflexiva e labiríntica, modular e cumulativa, solilóquio sobre o que há de conciliável no mundo. Também em Schiff se revela o contexto decisivo: prova-lo o cinismo com que, justapondo duas interpretações das Diabelli, deixa para a segunda, num pianoforte de 1820, o verdadeiro exercício de fricção e, de certa forma, gravitação que a obra exige. Duas lições.

“Pippermint Twist: Rockin’ Twist, Instrumentals, Exotica and Other Sounds from Spain 1958-1966” (Munster, 2013)



De forma a exaltar a paróquia, e para contrariar o rifão dos ventos e dos casamentos, diga-se que nesta compilação, vinda de Espanha e em nada anestesiada pela diplomacia, sobressai ‘Haz el mono’, dos portuguesíssimos Os Duques, de Johnny Galvão, variedade peninsular do quadrúmano que Bobby Darin e Rudy Clark celebraram em ‘Do the Monkey’. A propósito, outras ligações se estabelecem entre o que aí se passa e aquilo que do lado de cá da fronteira, na mesma altura, se esboçava: nomeadamente quando se mascara com ironia o provincianismo. Por isso se tropeça em façanhas equivalentes às de Os Tártaros de ‘Ó Rosa Arredonda a Saia’ ou do Conjunto Mistério de ‘Alecrim’, que abriam a porta ao lobo a pretexto de o domesticar. Aliás, o árbitro desta antologia, Miguel Aranega – bem como o seu par de auxiliares, Vicente Fabuel e Ximo Bonet –, não se cansa de sugerir que a aparente facilidade com que, em termos ibéricos, se dissipou a neblina de insurreição que acompanhava o rock, remetendo-o para a inócua categoria do folclore, deu azo às mais desviantes reconfigurações na sua constituição futura. Ou seja, se não fosse necessário iludir a tirania domiciliária do conservadorismo, teria aqui havido rock, surf, twist, o diabo a quatro, sim, mas jamais se sentiria o perfume da extraconjugalidade nestas músicas. De facto, há de tudo, do absurdamente humorístico – ‘Twist de los elefantes’ – ao enviesadamente heurístico – ‘No sabes bailar’ – passando pelo estritamente exótico: ‘Kana Kapila’, ‘Ali Baba Twist’, ‘Shadrack’, ‘Shu bi du bi do slop’, exercícios de gramática reduzida numa língua cifrada que todos souberam entender.

15 de fevereiro de 2014

Joseph Kabasele “Le Grand Kallé: His Life, His Music” (Sterns, 2013)



Antes de mais, uma correção: ‘African Jazz Mokili Mobimba’ e ‘Miwela Miwela’, duas canções de 1962, a primeira das quais inconfundível e particularmente emblemática, estão nesta antologia gráfica e fonograficamente dispostas por ordem inversa. Trata-se de um pequeno descuido que em nada compromete o que, de outra forma, se entende por irrepreensível. Aliás, impecavelmente subintitulada enquanto “Joseph Kabasele and the Creation of Modern Congolese Music”, esta coletânea de 38 temas gravados entre 1951 e 1970, que inclui dez inéditos em CD e uma monografia de 104 páginas, em inglês e francês, consagrada a esse a quem chamavam “Le Grand Kallé”, vem não só emendar uma desatenção histórica como, também, apresentar de modo finalmente organizado o alvor discográfico da estelar African Jazz, pioneiro engenho que os livros recordam como a charanga de serviço no coreto da independência congolesa – relembre-se ‘Indépendance Cha Cha’, de 1960, praticamente composto à mesa das negociações no Hotel Plaza, em Bruxelas – e cujo novelo das idas a estúdio ficou ao longo dos anos irremediavelmente emaranhado por inúmeras compilações governadas pela aleatoriedade. Assim, e de uma assentada, contraria-se aquilo que, no que a esta música diz respeito, anda muitas vezes de mão dada: o desprezo editorial pelos arquivos e a mania que os curadores têm de escolher os caminhos mais arrevesados. Aqui, como numa parábola, vai-se desfiando coerentemente a meada narrativa a que se agarrou o bolor da colonização, da superstição e das oportunidades perdidas até se encontrar o resíduo em que originalmente se teceu o pano da emancipação política, do desassombro espiritual e da esperança, matéria-prima para um mundo que, de facto, nunca chegou.
 
A Orchestre African Jazz em Bruxelas, 1960;  atrás, da esq. para a dta: Pierrot Yantula, Nico Kasanda, Armando Brazzos e Dechaud Mwamba; na frente, da esq. para a dta: Vicky Longomba, Roger Izeidi e Joseph Kabasele

Zehetmair Quartett: Beethoven, Bruckner, Hartmann, Holliger (ECM, 2013)



Não será necessário vasculhar excessivamente pelos arquivos para se dar com programas tão imaginativos quanto este. Aliás, um tempo houve em que a ECM secretariava recitais em que eram as obras a descodificar-se umas às outras – recordem-se, nessa perspetiva, os discos de Thomas Demenga, mas também o recente “Il Cor Tristo”, do Hilliard Ensemble, transita por quatro séculos, já para não referir o grémio do Dowland Project, que sobre o abismo coloca a própria noção de cronologia. Desta feita, tornam meio e mensagem a surgir cifrados, e descortinar as razões por detrás deste alinhamento pode dar origem a arrazoados especialmente obscuros: afinal, são 180 os anos que medeiam o “Quarteto nº 16 em Fá maior, Op. 135”, de Beethoven, apresentado em 1828, do “Quarteto nº 2”, de Holliger, estreado precisamente pelo Zehetmair, em 2008. Mais desconcertante ainda: entre um e outro estão o anacrónico “Quarteto em Dó menor, WAB 111”, de Bruckner, escrito em 1862 mas resgatado ao esquecimento em 1951, e o nº 2, de Hartmann, que assinalou o fim da Segunda Guerra Mundial e pôs termo ao “exílio interior” do compositor. Agora, afigurar-se-á deliberadamente críptico dizer que melhor se entende o que aqui está rumando do fim ao princípio – ou, então, trata-se de sublinhar o que já se sabe: que nada, nem a sombra da morte, houve de perecedouro em Beethoven. Mas a verdade é que só nos derradeiros instantes do quarteto de Holliger, assombrados pela plangência vocal dos instrumentistas, tudo se ilumina, quando na pauta se indica “singbarer Rest”, alusão ao “resíduo cantável” de Celan, testemunho que, mais do que acerca de música, isto pode ser sobre a memória dos homens que a música fabrica. E nessa medida é desarmante.