28 de janeiro de 2012

Luis Gasca “Collage” (BGP, 2011)

Ao serviço da orquestra de Count Basie, que acompanhava então Tony Bennett, Luis Gasca teve a sua dose de interpretações de ‘I Left My Heart in San Francisco’. Mas só anos mais tarde ecoou no seu íntimo essa história de um saudoso coração deixado no alto das colinas. Numa entrevista de 2002 para o site Jazz Review (já depois de ter sido dado como morto na biografia de Carlos Santana escrita por Simon Leng) referia-se assim à cidade californiana: “São Francisco tinha tudo o que eu precisava: mulheres, droga, música… Gastava o dinheiro todo em sexo e cocaína. Além de que era alcoólico, por isso tinha um diabo em cada ombro”. E, no entanto, aí deixou marcas num tempo que não foi só de praias loiras, mulheres douradas e drogas brancas: entre 69 e 72, o seu trompete – entre a poética deriva de Miles Davis e a agressividade harmónica de Freddie Hubbard – marcou discos de Janis Joplin, Santana, Van Morrison ou Bob Weir; uma nota de rodapé que, pela crónica inacessibilidade dos quatro álbuns gravados em nome próprio e em consequência de uma peripatética existência que fez com que durante décadas nada de si se soubesse (hoje, ao menos, tem uma página no Facebook), se confundiu com o essencial da sua produção. Mas basta ouvir “The Little Giant” (Atlantic, 69), “For Those Who Chant” (Blue Thumb, 72) ou “Born To Love You” (Fantasy, 74), nos quais combinou esforços de Herbie Hancock, Joe Henderson, Stanley Clarke, Jack DeJohnette ou Dave Holland, para se compreender que poderia ter sido outro o seu destino. O derradeiro “Collage” (Fantasy, 76), agora reeditado em CD, acentua a impressão numa majestosa sublimação do jazz latino (com arejados arranjos de Don Menza envolvendo Bobby Hutcherson, Patrice Rushen ou Harvey Mason) que se impõe simultaneamente como um adeus ao passado e uma dramática suspensão do futuro.

21 de janeiro de 2012

"Bossa Jazz: The Birth of Hard Bossa, Samba Jazz and the Evolution of Brazilian Fusion 1962-73" (Soul Jazz, 2011)

Bossa jazz. Quanto mais se pensa no assunto mais disposto se fica a contrariar a apósita tipificação. Não por logo se recordarem os versos de ‘Influência do Jazz’, com os quais, em 63, Carlos Lyra declarava “pobre samba meu/ (…) pra não ser um samba com notas demais/ (…) vai ter que se virar pra poder se livrar/ da influência do jazz”. Mas, efectivamente, e tal como sugerido por Ruy Castro no livro “Chega de Saudade”, por parecer impossível conciliar a proposta de João Gilberto com aquilo que a partir de 61 produziram Luiz Eça (Tamba Trio), Luis Carlos Vinhas (Bossa Três), J. T. Meirelles (Copa 5) ou Tenório Jr. (Quinteto Bottle’s). E, no entanto, talvez por se inspirarem por uma matriz que à guitarra traçou um ponto de encontro e desencontro com a verdade histórica, foi precisamente através dessa subtil decantação do samba que os músicos de jazz brasileiros ganharam rumo e se estabeleceram numa posição de irredutível ambiguidade. Esta antologia, que tem a sua maior limitação num arco temporal que frustra qualquer explicação (e que, em rigor, deveria terminar em 75, o ano de ‘Patumbalacundê’, de João Donato, um dos temas que colige), aflora o impulso mas atribui-lhe excessivas consequências: por exemplo, as gravações de Airto Moreira, Dom Um, Sérgio Mendes, Quarteto Novo, Walter Wanderley ou Edu Lobo aqui incluídas devem mais à (re)descoberta da música nordestina do que à bossa. E, em termos de tese, o retrato jamais ficaria completo sem menções à Turma da Gafieira, a Victor Assis Brasil, Laurindo Almeida, Egberto Gismonti, Moacir Santos ou aos Cinco-Pados, Rio 65, Gatos, Jongo Trio, Som 4, Ginga Trio, Cobras, Catedráticos, Tatuis ou Sambossa 5, que omite. Ainda assim, nada compromete a exuberante intangibilidade desta música que acompanhou com elegância um mundo em desintegração.

14 de janeiro de 2012

L’Orchestre Kanaga de Mopti “Kanaga de Mopti” (Kindred Spirits, 2011)

Com Ali Farka nas fileiras, constitui-se nos anos 60 enquanto Bani Jazz mas o nominal anglicismo contraria a política de Modibo Keïta, que, à semelhança do que no Senegal e Gana fazem Léopold Senghor e Kwame Nkrumah, encoraja exclusivamente expressões artísticas de pendor “autêntico”. Por isso, já sob a liderança de Sorry Bamba, o grupo adopta a designação de Orchestre Régional de Mopti (é do período um fascinante registo em 1970 lançado na Europa pela alemã Bärenreiter). Só que após o Golpe de Estado de Moussa Traoré, para aparentar a superação ideológica do presidente deposto, as mais populares bandas do Mali são forçadas a mudar de nome, ainda que não se alterassem os condicionamentos à sua produção. E, de facto, a acção de Ambassadeurs du Motel, Rail-Band de Bamako ou Super Djata Band parece então desenhada por um zeloso folclorista. Com esta notável excepção que coloca a hipocrisia estatal a descoberto. Porque ao assumir para a Régional de Mopti uma identidade axiomática e etnicamente filiada num ‘obscuro’ povo (kanaga é uma das máscaras cerimoniais dos dogon), Bamba prova que a tutela sabe menos acerca da cultura do seu país do que, por exemplo, sobre danças cubanas: no ano seguinte ao da gravação de tão singular obra, na Biennale Culturelle de 1978, o júri do regime penaliza bandas que incluem ritmos latinos nas suas apresentações mas nada aponta aos sintetizadores e pedais de efeitos usados pela Kanaga de Mopti, presumindo, talvez, que tão invulgar proposta dependeria de conhecimentos profunda e esotericamente ancestrais mas inquestionavelmente malianos. Quando, na verdade, ainda que num irrepetível dispositivo formal (pois nunca mais gravaram Bamba ou a orquestra nestes moldes), da irredutibilidade geográfica se partia já para o cosmos e com o desconhecido se desassombrava uma ingrata realidade.

7 de janeiro de 2012

“Rangarang: Pre-Revolutionary Iranian Pop” (Vampisoul, 2011)

A 31 de Dezembro de 2011, o presidente Obama promulgou sanções relativas a instituições financeiras internacionais com ligações ao banco central iraniano; por sua vez, no dia de ano novo, enquanto prosseguia com exercícios militares no Estreito de Ormuz, Teerão anunciou um avanço tecnológico importante na área da energia nuclear. A Leste e a Oeste, portanto, nada de novo. Daí o apurado sentido de oportunidade desta nova compilação. Nem que seja pelo simples facto de permitir o enquadramento de tão perturbadores sinais do tempo num cenário mais abrangente que o dos noticiários. Mas não se poderá seguir à letra a narrativa da sua apresentação: porque, ao compará-lo com o de hoje, isenta de responsabilidades o regime de um Xá, Mohammad Reza Pahlavi, que, relembre-se, foi herdeiro de uma intrusa dinastia de pai e filho sustentada pela anuição a interesses ocidentais, e cuja flagrante corrupção, incapacidade de conduzir reformas até a uma efectiva abertura da sociedade ou hostilidade à dissensão política precipitaram a Revolução Islâmica de 1979. Além de se repetir aqui a mesmíssima redução filosófica ensaiada por antologias similares (da garagista “Raks! Raks! Raks!” e da profundamente distópica mas musicalmente infalível “Pomegranates” até às recentes retrospectivas dedicadas a Googoosh pela Finders Keepers e a Kourosh Yaghmaei pela Now-Again), ao contrariar-se a atual demonização cultural do homogeneizado Irão no ocidente através de produções de época que mais devem à estética anglo-saxónica do que propriamente à persa. Contudo, os materiais de esperança agora reunidos manifestam-se iminentemente relevantes: pois lembram um instante em que se pintou com todas as cores do arco-íris (precisamente um dos significados de rangarang em farsi) aquilo que nos últimos 30 anos se cobriu de negro.