23 de fevereiro de 2013

Mendelssohn: Felix & Fanny (Virgin Classics, 2013)




Quatuor Ebène
Num poema dedicado a Charlotte von Stein, a dama de companhia da princesa Anna Amalia em Weimar, Goethe incluiu versos (“Ah, vós fostes, numa vida passada/ minha irmã ou minha esposa”) que, 150 anos depois, Freud interpretaria enquanto uma reedição de amor edipiano – sabe-se que para o pai da psicanálise “o mecanismo da poesia é igual ao das fantasias histéricas”. Já na peça “Die Geschwister” (em português, "Os Irmãos"), escrita no mesmo ano (1776), o autor de “Fausto” recorre à convenção para justificar, de fraternal para conjugal, a transição do afeto entre Wilhelm e Marianne. Admiradores do pensador alemão, e por ele louvados, Felix (1809-1847) e Fanny Mendelssohn (1805-1847) são agora reunidos pelo Quarteto Ebène de forma a fundamentar um programa irrepreensivelmente concebido, numa voragem praticamente sanguinária (se comparada, no caso de Felix, com a perspetiva dos quartetos Emerson ou Ysaÿe), que converte estas viscerais tessituras em vasos enlaçados num só coração – até porque, como escreveu Fanny numa carta ao irmão, “Felix, és o meu braço direito e o menino dos meus olhos”. Numa fatalidade do destino, foi ele que não suportou viver sem ela, sobrevivendo-lhe seis meses, não sem antes lhe consagrar, em jeito de requiem, o “Quarteto de cordas nº6 em fá menor”, no qual empregou dispositivos (trémulos a estremecer sobre notas pedais retumbando como sinos, etc.) que, rumando à mais dilacerante angústia, recordam com pungência o quarteto “A Morte e a Donzela”, de Schubert. O “Quarteto de cordas nº2 em lá menor”, composto em 1827, igualmente assombrado por uma vida ceifada, é um eco do derradeiro Beethoven do “Quarteto nº 16”. Entre eles, o “Quarteto de Cordas em mi bemol maior”, de Fanny, um discreto libelo feminista na tonalidade da “Sinfonia Heroica”, sugere uma furtiva genialidade que importa recuperar.

Brad Mehldau Trio “Where Do You Start” (Nonesuch, 2012)



A ideia não é, em si, nova. E, para nos ficarmos por companheiros geracionais, convirá relembrar esse paradigmático par de álbuns – um de originais e outros de versões – que Ethan Iverson, pianista dos Bad Plus, expôs há quinze anos no teorema “Construction Zone” e “Deconstruction Zone”, e recordar as incursões que o próprio Iverson, mas também Greg Osby, Jason Moran, Vijay Iyer ou, coetaneamente, Dave Douglas e Herbie Hancock, fizeram pela pop contemporânea. É quase uma tradição dentro de outra. Afinal de contas, já na alvorada do jazz, foi precisamente pela descoberta da música popular mais heterodoxa que aquelas bandas paroxísticas e ágeis – constituídas em redor de grémios, festivais, piqueniques, bailes, marchas e excursões – escaparam à sua condição provincial e arquitetaram uma crucial transmutação, abandonando genericamente o mutualismo em prol da arte de solistas pela qual se veio a reconhecer o mais virtuoso no género. E terá sido esse libertário postulado o motor de todos os celeumas. Por tudo isso não admira que, meses após o autoral “Ode”, proponha Mehldau, coadjuvado, como é hábito, por Larry Grenadier e Jeff Ballard, que se torne a equacionar a densidade do seu discurso artístico sob o pretexto de uma visita ao repertório de Nick Drake, Chico Buarque, Jimi Hendrix, Sufjan Stevens, Alice in Chains ou Elvis Costello, reforçando, nesta era de aplicativos personalizados para a reprodução digital de música, o papel do intérprete como o de um curador de sensibilidades. Há, inevitavelmente, uma afetação da postura do pianista ao lidar com tamanha estilização, mas no melhor da sua obra assinada sobressai um fascínio pela estrutura que aqui se prova valioso. Um axiomático formulista, perfeitamente empático em ‘Baby Plays Around’ e ‘Samba e Amor’.

Baden Powell “À Vontade” (Soul Jazz, 2012)



Os nomes próprios, por inspiração paterna, vinham do apelido composto do fundador do escutismo, Lord Baden-Powell, e é indesmentível que o guitarrista brasileiro aparentava levar uma vida de prospetivo nomadismo. Já o sobrenome, efetivamente familiar, remetia para Tomás de Aquino, o qual terá porventura lido sob o prisma da dialética aristotélica que o teólogo dominicano integrou no cristianismo. Mas a verdade é que Baden Powell de Aquino era mais virtuoso e errante nos palcos do que longe deles, apesar de europeiamente domiciliado no final da década de 60 em Paris e, quem sabe se num acaso chistoso, em Baden-Baden. Aí, tendo encontrado a luz na floresta negra através de uma série de títulos para a germânica MPS, confirmou-se um distinto hilemorfista, esculpindo materiais folclóricos com um decoro absolutamente ético, ainda que os estivesse a inventar à medida que lhes conferia forma. Porque, noutra das contradições a que entregou a ação, Powell operava na esfera do mito sobretudo quando a sua audiência acreditava estar perante a personificação do sincretismo popular sul-americano. A reedição de “À Vontade”, o seu quarto álbum, gravado em 1963, evoca a génese de tão singulares características e relembra o instante, algo contingencial, em que abandonou em definitivo o que se preparava para ser uma carreira largamente subterrânea. Ao estrear quatro dos 25 afro-sambas escritos em apenas três meses com Vinicius de Moraes (‘Consolação’, ‘O Astronauta’, ‘Candomblé’ e ‘Berimbau’), é igualmente o momento em que se ditou um destino que, não obstante a generosidade, a complexidade e a originalidade das suas criações, jamais se afastaria dessa fantasiosa visão do primitivismo afro-baiano. Espartano, esquivo e elegante, Baden Powell tocava como se tivesse pudor em largar beleza no mundo. Foi essa a sua maior dádiva.

16 de fevereiro de 2013

Entrevista a Jason Moran




Aos 38 anos, Moran consegue a proeza de ser tão influente sentado ao piano quanto atrás de uma secretária. E a atual temporada do John F. Kennedy Center for the Performing Arts espelha aspetos centrais da sua biografia artística. Enfatização de vínculos interativos com o público, fundamentação histórica da importância da educação, promoção de novos talentos, valorização da tradição e simultâneo reconhecimento das figuras que melhor questionam o dogma, manutenção de um eclético diálogo com as outras artes ou o fomento da expressão musical enquanto paradigma comunitário são preocupações que Moran traduziu em disco antes de as levar para um programa que inclui um ciclo de jazz do norte da europa, noites de baile, um festival dedicado a Mary Lou Williams, atuações de Fred Hersch, Anthony Braxton ou de Kenny Barron ou festas de aniversário para os septuagenários Jack DeJohnette e Charles Lloyd. Mas foi, de facto, em “Black Stars”, “The Bandwagon” ou “Ten” que reuniu o conjunto de ideias pelo qual se destacou numa geração – a de Brad Mehldau, Ethan Iverson ou Vijay Iyer, nascida na primeira metade dos anos 70 – marcada por uma ação esteticamente transversal, investida na supressão de fronteiras entre géneros e movida por uma prática interdisciplinar eminentemente contemporânea. Vem ao grande auditório da Culturgest acompanhado pelo contrabaixista Tarus Mateen e pelo baterista Nasheet Waits.

JS: O seu último disco,“Ten”, foi lançado há quase três anos, por isso estaria em falta se não lhe perguntasse pelo trio, se têm trabalhado em novo material e se reservam novidades para o público lisboeta?
JM: O Bandwagon está ótimo. E, sim, temos estado a gravar temas inspirados em Fats Waller. Nesse projeto participa o trio e também o conjunto de músicos que normalmente gravita em torno da espantosa Meshell Ndegeocello. Por isso há uma série de novas peças (algumas delas muito antigas) incluídas nas nossas atuações e estamos desejosos e gratos por as podermos mostrar em Lisboa.

JS: Há dez anos que viaja por Portugal e pela Europa, onde, presumivelmente, o jazz tem um estatuto periférico. E, no entanto, é nos Estados Unidos que se vê frequentemente envolvido na discussão de uma inimaginável proposição: a da falta de relevância do jazz no contexto da música moderna. Parece-lhe uma daquelas profecias autorrealizáveis?
JM: Bem, por um lado não acho mal que o jazz não esteja no centro das atenções dos média. Até porque na América a música evolui tão rapidamente que esse tipo de escrutínio poderia ser comprometedor. Na verdade, a questão fundamental é que nos faltam discussões mais vigorosas em torno da arte em geral, por isso todas as atividades criativas carecem de divulgação. Não só o jazz, mas também a música clássica, a ópera, a dança contemporânea, a literatura, etc. O jazz é uma força tão vital… e precisaremos sempre dessa e de outras energias criativas para tratarmos do nosso corpo e alma. Na realidade não estou preocupado com a relevância cultural do jazz e sim com as formas que temos à nossa disposição para incluirmos mais arte no nosso quotidiano.

JS: Foi nomeado consultor artístico do Kennedy Center e no exercício do cargo conseguiu já refletir algumas das inquietações manifestadas na sua música. Há algo de concreto que procure atingir?
JM: Quero essencialmente continuar o caminho traçado pelo meu predecessor, o lendário Billy Taylor: expor os melhores músicos possíveis a um público que poderá informar-lhes e justificar-lhes o essencial da sua própria relação com a música. Isto requer uma tremenda energia e devo dizer que tem sido absolutamente maravilhoso explorar todas estas possibilidades.

JS: Tem-se interessado pelo mais transitável na História da música e incluído no seu discurso uma série de descobertas que aparentam conduzi-lo a soluções criativas inéditas. Como se dá esse processo?  
JM: Temos a felicidade de possuir documentação sobre grande parte da História do jazz. Há registos fonográficos e até rolos para pianola bastante antigos. Por isso, à medida que o jazz se infiltrava pelo mundo fora estes objetos criados pelos seus fundadores tornavam-se os verdadeiros compêndios e guias para a sua prática. Já para aprendermos Mozart precisamos de pautas. Isto é, nunca vamos saber a que soava Mozart ao piano ou como foi ouvir a estreia de “Don Giovanni”. Ou aquilo que sentia quem escutava as improvisações de Bach ao órgão. Mas podemos pôr a tocar um disco de Monk ou Earl Hines. E isso para mim é absolutamente mágico: que possamos ter acesso a essa fatia da História que nos diz tanto sobre os compositores quanto acerca do que era, então, viver-se na América. O meu processo de investigação é esse – aliado à dádiva que foi estudar com Jaki Byard ou Andrew Hill –, mas não tenho como deixar de o filtrar pela minha própria visão das coisas, pelo que significa viver nos dias de hoje.

JS: Além de Monk e Ellington gravou Ravel, Brahms, Prokofiev, Afrika Bambaataa ou Björk, revelando-se, como outros da sua geração, um iconoclástico revivalista. Nunca sentiu que essas espirais cada vez mais distantes dos constituintes centrais do jazz lhe poderiam ameaçar a própria essência?
JM: Acho que nunca considerámos que Ellington o fazia quando orquestrou Grieg ou Tchaikovsky. Ou muito menos Coltrane quando tocava ‘Summertime’. Uma dimensão fundamental do jazz em termos formais é a de permitir a revelação de estilistas. As versões de temas alheios à sua História podem dizer-nos mais sobre o virtuosismo de quem adapta do que de quem compôs. E para mim é obrigatório que um artista reflita o ambiente à sua volta. Por isso interessa-me mostrar o que sentia em relação ao ‘Planet Rock’ e ao hip hop que ouvia em criança, ao que me é contemporâneo. Estes músicos de que falamos recorreram a toda a música. É o que quero. O Ravel compôs um blues, eu posso escrever um ballet.

JS: Envolve-se numa série de projetos que corroboram a tese de que uma ideia musical é mais importante do que uma forma musical. Vê a sua produção enquadrada no conjunto de princípios que determinam o jazz ou como uma força para a promoção de novos valores?
JM: O jazz, acima de tudo, promove novas ideias. Essa é uma das suas grandes virtudes. Examinando a sua História, e os seus principais desenvolvimentos década após década, compreende-se que a sua evolução era imperiosa. E nós, enquanto artistas, procuramos sempre novas formas de transmitir aquilo que sentimos. Cada filme, cada estória ou cada quadro partilha algo com a sua plateia. Olho para o meu trabalho e observo-o a par das outras artes e jamais confinado às paredes construídas em redor do jazz.

JS: E é o elemento da surpresa, e a vontade de assumir riscos, aquilo que melhor define o trabalho de um músico criativo nos dias de hoje?
JM: Essencialmente a gestão do risco, face às contrariedades e recompensas. Alguns músicos arriscaram muito – musical e pessoalmente, diga-se – para que eu possa levar a vida que levo. Enfrentaram o racismo ou o sexismo, entre tantas injustiças, e mesmo assim conseguiram exprimir a sua mensagem. O risco é um fator com que lidamos diariamente e é nessa circunstância que se revela também na prática da música improvisada.

JS: Ken Vandermark – com o qual gravou no grupo de Eric Revis para a portuguesa Clean Feed – disse-me numa entrevista que o que mais o impressionava em trabalhar com músicos veteranos era ver como eles ainda encontravam caminhos por desbravar. A ECM acabou de lançar “Hagar’s Song”, um álbum de duetos que Charles Lloyd gravou consigo. O que de mais importante retira da vossa associação?
JM: O Charles permite-me respirar mais fundo. E examinar profundamente o que emana da música à medida que ela vai acontecendo. Ele costuma dizer que tem uma mente de principiante. Ou seja, que para ele tudo é novo. Nessa perspetiva, este disco é como uma conversa íntima. É uma alegria tocar com um mestre que não receia avançar pela floresta adentro.

JS: O jazz ainda é uma força redentora para as iniquidades da sociedade norte-americana?
JM: O jazz cura-nos. O público procura prazer, amor e terapia. O músico partilha o que pode em forma de som e é pela sua assimilação que a plateia alimenta a alma. E há-de ser sempre assim.