27 de outubro de 2018

Fredrik Nordström “Needs” (Clean Feed, 2018)

Fredrik Nordström tem ao longo dos anos demonstrado apetência por figuras de geometria invulgarmente variável – e “Vibb”, de 2007, em que se fazia acompanhar por dez instrumentistas, logo salta à memória, se bem que “String”, de 2012, como este “Needs”, resultava já de uma adição aritmética, no caso 3 + 3. Mas, agora, no entanto, toda a operação é ainda mais simbólica, pois, como o Ornette Coleman de “Free Jazz: A Collective Improvisation”, Nordström formou aquilo a que por norma se chama “quarteto duplo”: de um lado, estereofonicamente, ele mesmo (saxofones tenor e barítono), Mats Äleklint (trombone), Filip Augustson (contrabaixo) e Christopher Cantillo (bateria), do outro Fredrik Ljungkvist (saxofone tenor e clarinete), Niklas Barnö (trompete), Torbjörn Zetterberg (contrabaixo) e Fredrik Rundqvist (bateria). Claro que a adesão ao modelo de Coleman será mais esquemática do que propriamente ideológica: com sete elegantes composições, “Needs” não se trata de contínua improvisação coletiva, nem o que resulta da sua audição se aproxima do que no ténis seria em simultâneo seguir duas partidas de pares num só ecrã.


Ao invés, aqui, e não obstante a acreção rítmica, dir-se-ia que “quarteto duplo” é apenas um disfemismo para octeto, como foi em “Rhyme & Reason”, de Ted Nash, ou em “Heavy Dreaming”, de Ryan Keberle. Não quer isto dizer que a escrita de Nordström possua tamanho requinte orquestral, nem o ponto é esse. Para nos ficarmos por registos marcados pela presença de oito executantes, como são ‘Cunga Black’, de Freddie Hubbard, ‘Mephistopheles’, de Wayne Shorter, ou ‘Mama Too Tight’, de Archie Shepp, a preferência do sueco irá para aqueles que geraram tensão a partir de situações de proximidade forçada. Não que ele tenha tornado explícito o seu conjunto de influências: diz tão-só produzir “jazz progressivo” com marcas de “música contemporânea e rock”. É possível: se a música contemporânea for “Octet”, de Steve Reich, e o rock ‘Eleanor Rigby’, dos Beatles, gravado que foi com quatro violinos, duas violetas e dois violoncelos. É que convém não esquecer o número mágico!

Hélène Grimaud “Memory” (Deustche Grammophon, 2018)

Quando há dois anos e picos – embora a palavra salpicos seja mais apropriada – revelou, com “Water”, um programa em que foi levada a meditar sobre o “cruzamento das dimensões decorativas e místicas da água através do seu poder transformador e das suas funções regeneradoras”, era óbvio que Hélène Grimaud escorregava para um abismo metafórico, desejosa de se soltar do passado (nessa medida, lembrava Miss X, referida por Jung em “Os Arquétipos e o Inconsciente Coletivo”, que de modo a descrever a situação de impasse em que se encontrava pintou uma aguarela de si mesma à beira-mar com a parte inferior do corpo presa em pedregulhos, como que apanhada pela cintura numa torrente de lava). Mesmo a fechar o disco, quando interpretava “La Cathédrale engloutie”, de Debussy, o medo maior era que, uma vez desaparecida nas profundezas da retórica, Hélène não mais conseguisse voltar à superfície. 

Agora, neste “Memory”, quando explica que lhe interessa explorar um “estado consciente comum a todos” e nos diz que “cada uma destas peças serve para evocar atmosferas de frágeis reflexos, uma miragem do que foi e do que podia ter sido” no que, enquanto seres humanos, diz respeito a “necessidades, motivações e desejos”, não esquecendo – ufa – que “a memória é como uma inexplicável e incontrolável força que espelha de forma pungente (…) aquilo que nos vai no âmago”, torna-se por demais evidente que, desta feita, está já a saltar em queda livre num depressivo precipício concetual. Escutando-a, na realidade, o que vem efetivamente à memória é Romy Schneider a cantar ‘La Chanson d’Hélène’, no filme “As Coisas da Vida”: “E o meu quarto está encerrado/ Aqui, o sol não entra mais”. Sobram as recordações, claro, e sucessivas refeições à base de madalenas: no caso, Hélène tenta extrair o açúcar da introspecção a Silvestrov (em cintilantes “Bagatelas”), Debussy (numas “Ao Luar” e “A Mais que Lenta” apropriadamente atmosféricas), Chopin (uma valsa ou uma mazurca sem a vertigem da poesia) e Satie (“Cnossianas”, com um tétrico rubato). Mais etérea, ela, só quando trocar o piano por uma harpa eólica.

20 de outubro de 2018

Rodrigo Amado “A History Of Nothing” (Trost, 2018)

Por mais paradoxal que pareça, em termos cosmológicos, este “A History of Nothing” remete concetualmente para uma categoria gerada pelo autor de “A Teoria de Tudo”, Stephen Hawking, quando veio o físico britânico alvitrar que “a criação espontânea é a razão pela qual existe algo em vez de nada”. Embora eminentemente metafórica trata-se de uma classificação – como será, digamos, a da “composição em tempo real” – de que Rodrigo Amado se socorre em entrevistas para melhor explicar ao que vem: “Improvisando a partir do nada podemo-nos focar a 100% no momento”, declarou ao Bandcamp Daily. Dir-se-ia um princípio fundamental da música que faz, conquanto não seja propriamente fácil de realizar. Daí, quiçá, a necessidade – a que dá resposta este grupo com Joe McPhee, Kent Kessler e Chris Corsano – de se rodear de “grandes músicos, bem melhores e mais experientes do que [ele]”, como sugeriu ao JL.

É uma frase algo enervante, pois não obstante aparentar modéstia, a verdade é que não deixa igualmente de insinuar que Rodrigo, através dessa prática, estaria, primeiro, como que a fazer audições para uma certa ideia de grandeza e, segundo, a ir sucessivamente ao encontro de músicos permeáveis à idolatria – seja como for, em virtude, até, do seu apelido, e obviamente de modo irónico, seria irresistível argumentar que havia, aí, qualquer coisa do “Transforma-se o Amador na Cousa Amada”, de Camões. Mas Rodrigo não terá razões para se preocupar. Até porque em sua defesa logo surge Herberto Helder, lembrando que “o amador (…) transforma a coisa amada” e que “o amador e a coisa amada são um único grito”. Isto, porque nunca como neste seu disco o saxofonista foi tanto aquilo que sempre deu mostras de querer ser: alguém capaz de desfiar o forro da história do jazz até a pôr do avesso e a depender de linhas invisíveis. Em “History of Nothing”, de 1962, Eduardo Paolozzi provava que a reprodução pictórica do mundo não passava sem novas imagens. Agora, neste “A History of Nothing”, confirma-se que a sua representação musical carece também de novos sons. O nada, aqui? Talvez só o tal céu noturno de que falava Emil Cioran – e contra o qual, dizia, projetamos o fogo-de-artifício da cultura.

Alfred Brendel: Live in Vienna (Decca, 2018)

Acerca do ator, essa insinuante, insistente e incómoda criatura que mais sincera se prova quão mais vulnerável à psicose se declara, num poema, escreveu Brendel: “Que considerável façanha/ Noite após noite/ Exercer em palco/ Destemidamente/ Sem mostrar sinais de fadiga/ Senão mesmo com o mais completo zelo/ Uma atividade/ Que a maior parte de nós gostaria de manter privada/ Nomeadamente/ Fazer amor.” Terá sido, então, com receio de começar a mostrar sinais de fadiga que Brendel se afastou em dezembro de 2008 da atividade em que mais se distinguiu durante as seis décadas precedentes: a de pianista de concerto. Fê-lo em Viena, sem perder a boa disposição, aos 77 anos dizendo adeus com o “Jeunehomme”, de Mozart. Agora, em notas de apresentação, é nesse espírito que se refere, por exemplo, a certas recomendações que Schumann legou a jovens intérpretes: “Como é que Schumann dizia no seu ‘Musikalische Haus- und Lebensregeln’? ‘Toquem sempre de modo flexível e audaz! Tocar dois compassos de seguida no mesmo tempo revela falta de imaginação.’ Não, estava a inventar. Eis de facto o que ele escreveu: ‘Toquem no tempo correto. Há virtuosos que ao tocar mais parecem um bêbado a cambalear’”. 

Trata-se de uma advertência que leva à letra: o “Concerto para Piano” de Schumann que aqui nos traz – captado ao vivo em março de 2001, no Musikverein, com Simon Rattle a dirigir a Filarmónica de Viena – vem eliminar as toxinas que há muito influenciam a obra e reparar as desordens que provocaram. Pois, não há memória de uma articulação tão clara, direta e fluida dos muitos elementos contrastantes que romanticamente o caracterizam – nem o próprio Brendel dela se acercou em gravações anteriores (em 1980 e 1997) – nem tão-pouco vem à ideia alguém, assim, capaz de tanto lhe reavivar as cores sem borrar de todo a pintura ou de sugerir uma tão grande proximidade corporal com o calor que irradia. Como complemento, igualmente registadas ao vivo em Viena, mas em junho de 1979, as “Variações Handel”, de Brahms. E, cá está: a mesma energia e entrega e a mesma vontade de fazer amor, noite após noite.

13 de outubro de 2018

Agenda: Carla Bley*, Jazz ao Centro, SeixalJazz

Já se passaram mesmo 50 anos desde que Carla Bley deu início à gravação de “Escalator Over the Hill”? Não custa a crer, claro, tendo em conta este trio de tanta cordura e candura em que hoje se concentra, e que, em concerto, costuma preferir ficar num canto a cochichar do que a comandar atenções no meio do palco. Dir-se-ia uma postura diametralmente oposta à de outrora, quando as suas produções se assemelhavam a um filme de série B em que um Rolodex ganhasse subitamente vida e pusesse os seus cartões-de-visita a gritar uns com os outros – em “Escalator…”, entre muitos mais, entravam Jack Bruce, Linda Ronstadt, Sheila Jordan, Jeanne Lee, Charlie Haden, Enrico Rava, Gato Barbieri, Don Cherry ou John McLaughlin. Era um tempo em que as suas orquestrações pareciam fazer aos músicos o que a laca fazia ao seu cabelo – desafiavam-lhes a vontade própria ao mesmo tempo que lhes impunham uma forma algo excêntrica. Também isso se foi alterando com os anos. Mais visivelmente através deste trio, esse organismo vivo que é a obra de Carla Bley foi ganhando uma dimensão não exatamente humana mas, isso sim, mais pessoal. Isto é gente que se conhece há muito: Carla e Steve Swallow são casados, e desde que chamou o baixista para produzir o seu primeiro disco a solo (um homónimo, lançado em 1987) Andy Sheppard nunca mais largou o casal – em 1995, editaram “Songs With Legs”, gravado ao vivo durante uma digressão europeia. E é outra tour que os traz, agora, a Portugal: tocam dia 26 no Convento de São Francisco, em Coimbra, e dia 27 no Fórum Cultural do Seixal, no âmbito dos festivais Jazz ao Centro e SeixalJazz respetivamente. Por sinal, são um dos pontos altos dessas programações, em que se destacam ainda, em Coimbra, Sylvie Courvoisier & Mary Halvorson (17), Rodrigo Pinheiro/Gabriel Ferrandini/ Pedro Sousa (18), André Fernandes (19), Lokomotiv (20) ou o LAN Trio, de Mário Laginha (27), e, no Seixal, Mark Guiliana (18), José Salgueiro (19) ou Aaron Parks (20). Não possuirão tanto as instruções genéticas do jazz no seu ADN quanto Carla, mas reconhecer-lhe-ão as características hereditárias.

* [atualização a 23/11: por motivo de doença, os concertos de Carla Bley foram cancelados]

Vivaldi: Sonatas For Cello & Basso Continuo (Harmonia Mundi, 2018)

Há, hoje, muitas formas de caracterizar Antonio Vivaldi. Uma delas, porventura algo dissimulada, será retroceder – andando para trás como o comboio de Chelas, como antigamente se dizia – até ao momento em que J. S. Bach se dedicou às transcrições de “L’estro armonico”: nomeadamente à do “Concerto Nº 10”, em Si menor, cuja altura modificou, descendo um grau, para Lá menor, e cuja extravagância solista transpôs, e elevou, de quatro violinos para quatro cravos – uma “intrigante luta estilística entre o apetite alemão pela complexidade e a apetência italiana pela lucidez”, conforme assinalou Christopher Hogwood. A referência não é inocente, como é óbvio: não fosse o revivalismo do século XIX em torno da obra de Bach e sabe-se lá o que teria conseguido rebocar o revolucionário arcaísmo de Vivaldi para o século XX. Nessa medida, a certa altura, estávamos todos como “O Menino Selvagem”, de François Truffaut (1970), cujo despertar para a consciência de si e do mundo foi feito ao som do “Concerto para Flautim”, RV 443. Aliás, adaptando as palavras do maestro e cravista inglês, enquanto Vivaldi foi sendo redescoberto e reavaliado ia sobretudo ilustrando o desejo de velocidade que distinguia a sociedade da era moderna - e a tal “luta estilística” poderia agora descrever os anúncios da BMW ao som de “As Quatro Estações”.

Talvez como reação a isso, há 30 anos, quando gravou estas “Sonatas para Violoncelo”, com Christophe Coin como solista, tenha Hogwood optado por mostrar um Vivaldi menos exuberante, mais introspetivo, sem aquele frenesi que, na partitura, de tão apressadas, levava as notas a tropeçar nas linhas do compasso. Ora, aqui, Jean-Guihen Queyras (o baixo contínuo é assegurado por Michael Behringer, em cravo e órgão, Lee Santana, na tiorba, e Christoph Dangel, ao violoncelo) parece devolver as sonatas ao seu estado primitivo, acentuando-lhes cor e contraste sem comprometer uma elegância arquitetural de conjunto, com tempos rápidos, então, particularmente vivos e vigorosos e com a típica volubilidade de um bailado. Tudo é tangível e posto em relevo, tudo refulge e se enleva até se tornar incorpóreo e elementar – água, terra, fogo e ar a dançar na voragem dos séculos.