20 de outubro de 2018

Alfred Brendel: Live in Vienna (Decca, 2018)

Acerca do ator, essa insinuante, insistente e incómoda criatura que mais sincera se prova quão mais vulnerável à psicose se declara, num poema, escreveu Brendel: “Que considerável façanha/ Noite após noite/ Exercer em palco/ Destemidamente/ Sem mostrar sinais de fadiga/ Senão mesmo com o mais completo zelo/ Uma atividade/ Que a maior parte de nós gostaria de manter privada/ Nomeadamente/ Fazer amor.” Terá sido, então, com receio de começar a mostrar sinais de fadiga que Brendel se afastou em dezembro de 2008 da atividade em que mais se distinguiu durante as seis décadas precedentes: a de pianista de concerto. Fê-lo em Viena, sem perder a boa disposição, aos 77 anos dizendo adeus com o “Jeunehomme”, de Mozart. Agora, em notas de apresentação, é nesse espírito que se refere, por exemplo, a certas recomendações que Schumann legou a jovens intérpretes: “Como é que Schumann dizia no seu ‘Musikalische Haus- und Lebensregeln’? ‘Toquem sempre de modo flexível e audaz! Tocar dois compassos de seguida no mesmo tempo revela falta de imaginação.’ Não, estava a inventar. Eis de facto o que ele escreveu: ‘Toquem no tempo correto. Há virtuosos que ao tocar mais parecem um bêbado a cambalear’”. 

Trata-se de uma advertência que leva à letra: o “Concerto para Piano” de Schumann que aqui nos traz – captado ao vivo em março de 2001, no Musikverein, com Simon Rattle a dirigir a Filarmónica de Viena – vem eliminar as toxinas que há muito influenciam a obra e reparar as desordens que provocaram. Pois, não há memória de uma articulação tão clara, direta e fluida dos muitos elementos contrastantes que romanticamente o caracterizam – nem o próprio Brendel dela se acercou em gravações anteriores (em 1980 e 1997) – nem tão-pouco vem à ideia alguém, assim, capaz de tanto lhe reavivar as cores sem borrar de todo a pintura ou de sugerir uma tão grande proximidade corporal com o calor que irradia. Como complemento, igualmente registadas ao vivo em Viena, mas em junho de 1979, as “Variações Handel”, de Brahms. E, cá está: a mesma energia e entrega e a mesma vontade de fazer amor, noite após noite.

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