27 de outubro de 2018

Hélène Grimaud “Memory” (Deustche Grammophon, 2018)

Quando há dois anos e picos – embora a palavra salpicos seja mais apropriada – revelou, com “Water”, um programa em que foi levada a meditar sobre o “cruzamento das dimensões decorativas e místicas da água através do seu poder transformador e das suas funções regeneradoras”, era óbvio que Hélène Grimaud escorregava para um abismo metafórico, desejosa de se soltar do passado (nessa medida, lembrava Miss X, referida por Jung em “Os Arquétipos e o Inconsciente Coletivo”, que de modo a descrever a situação de impasse em que se encontrava pintou uma aguarela de si mesma à beira-mar com a parte inferior do corpo presa em pedregulhos, como que apanhada pela cintura numa torrente de lava). Mesmo a fechar o disco, quando interpretava “La Cathédrale engloutie”, de Debussy, o medo maior era que, uma vez desaparecida nas profundezas da retórica, Hélène não mais conseguisse voltar à superfície. 

Agora, neste “Memory”, quando explica que lhe interessa explorar um “estado consciente comum a todos” e nos diz que “cada uma destas peças serve para evocar atmosferas de frágeis reflexos, uma miragem do que foi e do que podia ter sido” no que, enquanto seres humanos, diz respeito a “necessidades, motivações e desejos”, não esquecendo – ufa – que “a memória é como uma inexplicável e incontrolável força que espelha de forma pungente (…) aquilo que nos vai no âmago”, torna-se por demais evidente que, desta feita, está já a saltar em queda livre num depressivo precipício concetual. Escutando-a, na realidade, o que vem efetivamente à memória é Romy Schneider a cantar ‘La Chanson d’Hélène’, no filme “As Coisas da Vida”: “E o meu quarto está encerrado/ Aqui, o sol não entra mais”. Sobram as recordações, claro, e sucessivas refeições à base de madalenas: no caso, Hélène tenta extrair o açúcar da introspecção a Silvestrov (em cintilantes “Bagatelas”), Debussy (numas “Ao Luar” e “A Mais que Lenta” apropriadamente atmosféricas), Chopin (uma valsa ou uma mazurca sem a vertigem da poesia) e Satie (“Cnossianas”, com um tétrico rubato). Mais etérea, ela, só quando trocar o piano por uma harpa eólica.

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