29 de setembro de 2012

Chico Buarque “Na Carreira” (Biscoito Fino, 2012)



Para quem não tem lançado assim tantos discos ao vivo quanto isso (isto segundo os parâmetros do mercado brasileiro, em que o formato se estabeleceu como uma engenhosa solução para os mais predatórios e sinecuristas instintos da indústria musical) custa que “Na Carreira” se apresente num escusado modelo compilatório ainda capaz de gerar equívocos conceptuais: de facto, o que temos aqui não é tanto o retrato de um (único) concerto quanto uma montagem de registos de mais do que um (a ficha informativa explica que se trata de uma gravação de Fevereiro de 2012, efetuada na sala Vivo Rio, no Rio de Janeiro, na qual, acrescente-se, Chico se apresentou 24 noites entre 5 de Janeiro e 12 do mês seguinte), gerando o procedimento inevitáveis interrupções narrativas e, de tema para tema, inquietantes divergências na ambiência emanante da plateia, confusas flutuações tímbricas vocais e instrumentais e correções de pormenor na mistura que se provaram desajeitadas na definição geral de um quadro sonoro coerente e equilibrado (numa última nota técnica, pelo menos a edição portuguesa apresenta dois temas – ‘Se Eu Soubesse’ e ‘Sem Você Nº2’ – com a ordem trocada no áudio em relação à determinada por contracapa e livreto). Não obstante o desacerto, decorre do roteiro de um espetáculo construído em redor de clássicos mais ou menos obscuros do cancioneiro de Buarque (‘Teresinha’, ‘O Meu Amor’, ‘Anos Dourados’ ou ‘Todo o Sentimento’ ao lado das menos unificadoras ‘Ana de Amsterdam’, ‘Baioque’ ou ‘A Violeira’, compostas para teatro e cinema) a confirmação de que as dez canções de “Chico”, o álbum de inéditos de 2011, estão ao nível do melhor que o compositor criou no último quarto de século. A banda, liderada por Luiz Claudio Ramos e pontificada por Wilson das Neves, Chico Batera ou Jorge Helder, esteve naturalmente competente e compreensivelmente ufana.


22 de setembro de 2012

“A Tribute to Caetano Veloso” (Universal, 2012)



Não é Hal Willner quem quer. E ainda que seja golpe baixo, a pretexto desta homenagem que até evitou repetir temas gastos, começar por evocar o nome daquele que há 30 anos vem redefinindo o conceito de autoria em tributos dirigidos a Nino Rota, Kurt Weill, Walt Disney, Charles Mingus ou Leonard Cohen, a verdade é que ignorar-lhe por completo o tutorial será infâmia maior. Para mais num caso de ímpar contumácia, resistente ao ecletismo postiço e ao impulso globalista desta nova ordem mundial que Paul Ralphes, o expatriado britânico encarregue da direção artística do projeto, procurou aviar com estratagemático servilismo, empregando norte-americanos (Beck, Chrissie Hynde e Devendra Banhart), uma banda inglesa (Magic Numbers), uma fadista (Ana Moura, em ‘Janelas Abertas Nº2’, uma canção tão estruturalmente portuguesa quanto ‘Os Argonautas’), um espanhol (Miguel Poveda) ou um uruguaio (Jorge Drexler) mais com mente nos respetivos mercados nacionais, parece, do que na produção de mais-valia estética. Será uma forma de ver as coisas. Outra dirá que foi Paul Heck e restante equipa da organização Red Hot a adiantar-se às festividades – Caetano fez 70 anos em Agosto último – e gerar com um “Red Hot + Rio 2” editado em Junho de 2011 o justo preito às mais utópicas manifestações do baiano. Seja como for, trata-se de uma inesgotável herança que soube encontrar o êxtase no mundano e o superficial no transcendente ou transformar transes pessoais em experiências profanas de muitos e transas coletivas em experiências sagradas só suas. Há aqui uma seleção brasileira (Céu, Marcelo Camelo, Tulipa Ruiz, Mariana Aydar) que o compreendeu e outra (Sérgio Dias, Rodrigo Marante, Qinho, Momo, Luísa Maita, Seu Jorge) que apenas traz à memória um verso em 75 escrito por Caetano para a sua irmã Nicinha: “a vida tem uma dívida com a música perdida”.

15 de setembro de 2012

Chicha Libre “Canibalismo” (Crammed, 2012)



No “Manifesto Antropófago”, por entre ocasionais referências à lábia lusitana e empregando uns quantos aforismos de fazer inveja a Millôr Fernandes, concluía exuberante e telegraficamente em 1928 o modernista brasileiro Oswald de Andrade: “Só a antropofagia nos une. Socialmente. Economicamente. Filosoficamente. Única lei do mundo. Expressão mascarada de todos os individualismos, de todos os coletivismos. De todas as religiões. De todos os tratados de paz. Tupi, or not tupi that is the question”. A alegoria – embora Pero Fernandes, o bispo deglutido pelos índios caetés em meados do século XVI, se pudesse opor à classificação – aprofundava esquematicamente o anterior “Manifesto da Poesia Pau-Brasil” e, de certa forma, preconizava a instância cultural pós-geográfica e atemporal que teoristas digitais e áugures da crítica contemporânea, incrédulos face à contínua imaterialidade das suas previsões, consideram muito dos nossos dias, que nos anos 60 serviu já de lenha à prática tropicalista de Caetano Veloso e demais baianos e que Olivier Conan e restantes Chicha Libre, já agora, procuram de uma só vez transferir para os sincretistas originais da chicha peruana (ameríndios dos bairros de lata de Lima como Los Destellos, Los Shapis ou Los Mirlos) e para a sua própria ação (no grupo nova-iorquino militam dois franceses, um venezuelano, dois norte-americanos e um mexicano). “Canibalismo”, no máximo, é um ringue de vale-tudo (mas mesmo tudo, “Cavalgada das Valquírias” inclusive) estilístico que obriga a uma inoportuna reflexão sobre exploração económica, aculturação ou o absurdo da atual reiteração de conceitos de especificidade racial, artística ou etnomusicológica; no mínimo, sacia uma infinita sede de exotismo como um placebo, não possuindo as propriedades do produto genuíno mas operando milagres nos corpos certos.

8 de setembro de 2012

Le Mystère Jazz de Tombouctou (Kindred Spirits, 2012)


Na crua exposição nacionalista em que se transformou a música popular do Mali na década de 70, entre expoentes dados a infinitésima retalhação (observe-se o caótico espólio de Rail Band e Ambassadeurs du Motel), destacam-se duas séries eminentemente colecionáveis: a primeira, semeada pelo regime de Modibo Keïta e colhida pelo de Moussa Traoré, consiste num levantamento de 15 títulos editados pela alemã Bärenreiter-Musicaphon, entre os quais, sob a designação “Les Meilleurs Souvenirs de la 1ère Biennale Artistique et Culturelle de la Jeunesse (1970)”, se agrupou a produção desse ano das orquestras regionais de Ségou, Mopti, Sikasso e Kayes, da L’Orchestra National ‘A’ e da Rail Band; a segunda, datada de 1977, publicou-se com o selo Mali Kunkan e, de certa forma, complementa a anterior registando-lhe dramáticas transformações procedimentais. É desta precisamente que provém a fascinante Mystère Jazz de Toubouctou, registada neste singular LP lançado então ao lado de não menos deslumbrantes ensaios de Kéné-Star de Sikasso, National Badéma, Sidi Yassa de Kayes, Bida de la Capitale, Super Biton Nationale de Ségou ou Kanaga de Mopti, que, em conjunto, promoviam uma densa recomposição de códigos tradicionais mandingo, tamaxeque, bobo ou fula (para quem não compra vinil a preços exorbitantes, adiante-se que só o álbum da trupe de Mopti está atualmente disponível em CD e que “Mali 70: Electric Mali” compilou em 2008 um par de temas de cada). No momento em que Tombuctu está a saque – com a destruição da entrada sagrada na madraça de Sidi Yahya – convém relembrar este prodigioso manifesto de invenção e tolerância que, daí, por entre fanfarreados uníssonos de metais e hipnoides ostinato à guitarra elétrica, nos falou um dia de Alá, de mesquitas, do deserto, da chegada à lua e, naturalmente, de que tudo tem um fim.

1 de setembro de 2012

Debo Band “Debo Band” (Next Ambiance/Sub Pop, 2012)



Se a mais fantasiosa construção sobre música cigana do último decénio se pariu em Manhattan – através dos Gogol Bordello do ucraniano Eugene Hütz – e se, por exemplo, a ressurreição estética da chicha peruana muito deve à ação de um francês residente em Brooklyn – Olivier Conan, da editora Barbès e do grupo Chicha Libre – não será propriamente pela improvável procedência que causa agora espanto esta esfuziante celebração. Aliás, Francis Falceto, o organizador da infinitamente exótica Éthiopiques, acabou de produzir, para a subsidiária Ethiosonic, uma compilação consagrada a música contemporânea etíope (“Noise & Chill Out – Ethiopian Groove Worldwide”, em que participaram Kronos Quartet, Either/Orchestra ou The Ex) evitando restringir-se aos códigos postais de Adis Abeba e na qual incluiu precisamente esta Debo Band, originária de Boston. Mas que os seus 11 elementos liderados pelo saxofonista Danny Mekonnen – entre os quais se alinham instrumentistas das mais variadas proveniências e, só para adoçar a história, se distingue um soprador dedicado ao sousafone, idealizado em finais do século XIX pelo luso-descendente John Philip Sousa – realizem variações sobre matrizes originais um pouco mais substantivas do que aquilo que no cinema se designaria como ‘filme de época’ será já motivo de admiração. E, no entanto, é disso mesmo que aqui se trata – disso e de uma visão pluralista do mundo capaz de rejeitar aquele patrulhamento da dignidade étnica que ainda controla os quatro cantos da diáspora digital e que, presumivelmente, em semelhante desiderato, nunca esbarrou com a ‘Grândola, Vila Morena’ tocada pela Liberation Music Orchestra, Revueltas interpretado pelo Willem Breuker Kollektief, Satie pela Vienna Art Orchestra ou até, lá está, Mulatu Astatke a quintessenciar aquela coisa rigorosamente etíope chamada “Afro-Latin Soul”.