24 de setembro de 2011

“AfroLatin: Via Kinshasa” (Syllart/Discograph, 2011)

Parte importante da produção de Grand Kallé Kabasele, Docteur Nico, Tabu Ley Rochereau e Franco sofreu durante anos o mais indecoroso tratamento às mãos da Sonodisc: três décadas de duvidosas edições de alguma da mais crucial música popular da segunda metade do século XX em que se ignoravam datas, confundiam frequentemente títulos e intérpretes, repetiam capas ou sequenciavam temas na rotação errada. Quando, após a falência da editora, Ibrahima Sylla – o mais famoso produtor africano e proprietário da Syllart – negociou com Kallé e Tabu Ley os direitos para relançar as suas gravações, desperdiçou, ao repetir muitos dos procedimentos da Sonodisc, a oportunidade de lhes restaurar a dignidade. Mas ocasionalmente, como em “Pont sur le Congo” ou “Congo 70: Rumba Rock”, sintetiza-as de forma apelativa para neófitos, embora o material aqui antologiado traia um conceito – a influência da música cubana em Kinshasa – teoricamente melhor servido por “Roots of Rumba Rock” (Crammed) ou “Cubanismo from the Congo” (Honest Jon’s). Só que de teoria está, possivelmente, farto quem desconfia não terem fim os tesouros da música congolesa dos anos 60 e sonha em conseguir um dia deitar-lhes a mão. Nessa perspectiva, ao incluir seis temas de Kallé (com a African Jazz e a African Team) e oito de Nico (com a African Fiesta e a African Fiesta Sukisa) hoje ausentes de qualquer colecção que cumpra os mínimos e ao evitar repetições significativas com as recentes compilações da Sterns – um tema por artista – com os treze de Franco (com a OK Jazz) e nove de Tabu Ley (com a African Fiesta e a African Fiesta National), consegue esta “Afrolatin: Via Kinshasa” apontar para a terra prometida. Peca apenas por omissões (Wendo, Rock-a-Mambo, Vévé, Maquisards, Verckys, etc) e alguma aleatoriedade que se esquecem mal se carrega no play.

17 de setembro de 2011

Tamikrest "Toumastin" (Glitterhouse, 2011)

Não chega a informação sequer a rastejar pelo fundo dos ecrãs durante as emissões dos telejornais. E, ao enésimo boletim de agências noticiosas sobre os conflitos na Líbia, poucos se darão ao trabalho de adicionar à complexa equação uma incógnita sobre a qual ainda menos se sabe. Mas é óbvio que com a queda de Gaddafi cai também por terra a esperança de muitos tuaregues; principalmente daqueles que, alistados na Legião Islâmica, sempre acreditaram que o seu povo teria lugar na futura nação do Sahel com a qual sonhava ainda o autocrata quando, em 1989, gritou de punhos erguidos à imprensa na oficialização da União Árabe do Magrebe: “de Marraquexe ao Bahrein!”. A verdade é que, por mais diligências que tenha nesse sentido feito o líder líbio (e não será de somenos importância tê-la armado e treinado militarmente), nunca se materializou um Estado para a tribo nómada. Contam-se por isso às centenas os tuaregues que fogem por estes dias à desgraça que se abateu sobre o regime do seu único investidor importante, tentando escapar para o Níger ou para o Mali, onde se ouvem já vozes de alerta receando nova insurreição. Ousmane Ag Mossa, compositor e vocalista dos Tamikrest, está cansado da guerra. Com 5 anos, durante a Rebelião Tuaregue de 1990, escondia-se de raides do exército maliano e ouvia cassetes com gravações dos Tinariwen, mas, ainda que se considere um revolucionário, não pegou em armas. Nas suas canções – exemplarmente gravadas por Chris Eckman (Walkabouts) e que se escutam como uma variante regional do ensaiado por Bob Dylan e Mark Knopfler em “Infidels” – escreve cálidos e poéticos manifestos em nome da liberdade e independência e reflecte melancolicamente sobre uma velha inquietação: pior do que perder de vista o que sempre foi seu será ter permanentemente à frente dos olhos aquilo que jamais possuirá.

10 de setembro de 2011

Group Doueh "Zayna Jumma" (Sublime Frequencies, 2011)

Nunca ficou claro se a Sublime Frequencies construiu um programa ideológico a partir da exclusão geográfica ou se terá sido ao contrário. De facto, o missionário zelo que emprega nas suas expedições pelo globo trai com frequência a problemática geral das culturas locais que vai encontrando pelo caminho mas raramente deixa de salvaguardar a superioridade moral da sua convicção. Daí, desde a sua criação, em 2003, privilegiar a editora a divulgação de música de minorias étnicas, de manifestos oriundos de focos de dissensão política, de frenéticos veículos de êxtase espiritual e dos mais surpreendentes impulsos de diluição de fronteiras estéticas naqueles que aspiram por divisões nacionais. Naturalmente, o Group Doueh, que faz tudo isso, assenta-lhe que nem uma luva. Activo há mais de 20 anos em Dakhla, a cidade costeira do Sara Ocidental, na Mauritânia, o grupo de Salmou ‘Doueh’ Bamaar, que já passou por Portugal, luta pela sobrevivência sarauí como, por exemplo, mais a leste no mesmo deserto, se dedicam os Tinariwen à autonomia tuaregue. E é evidente como, quer uns quer outros, adaptaram a sua produção a fórmulas mais hegemónicas assim que entraram em contacto com plateias globais. “Zayna Jumma”, em comparação com discos anteriores, sublinha essa dialéctica de duas maneiras: primeiro, através da acção de Hamdan e El Waar (filhos de Doueh, respectivamente, na bateria e no sintetizador), que, tema a tema, tanto estranham a tradição em que se inserem quanto, conforme os recursos estilísticos utilizados pelo pai (ora à guitarra elétrica ora ao tinidit, invariavelmente individualista), lhe repetem os preceitos mais ortodoxos; segundo, pela forma como a voz de Halima, mulher de Doueh, se sobrepõe a essa tensão de fundo, imune a qualquer variação, lembrando que compromisso e resistência podem ser faces de uma mesma moeda.

3 de setembro de 2011

Bombino "Agadez" (Cumbancha, 2011)

Numa cedência aos mais puros impulsos fantasistas inerentes à teogonia dos deuses da guitarra, a editora promove “Agadez” como a estreia de Omara ‘Bombino’ Moctar, embora admita também que outras gravações a precedem sem que refira aquela que primeiro lhe granjeou reputação no ocidente, “Guitars from Agadez, Vol. 2”. Essa antologia – em 2007 registada in situ por Hisham Mayet para a Sublime Frequencies – oscilava entre cordatas baladas acústicas e violentas torções à estirpe do blues-rock que se associa à música tuaregue, e, à sua luz, este novo álbum entende-se como a maturação de um estilo que atribui agora gravidade às antigas meditações e transforma em catarse o desprendimento outrora empregue em mantras elétricos. Mas o reconhecimento da discografia – o que explica a sua omissão dos materiais biográficos – padroniza um percurso que nada tem de normal. Nascido no deserto do Ténéré, no Níger, em 1980, Bombino viveu o exílio por duas vezes: em criança, durante a Primeira Rebelião Tuaregue, ao mudar-se com a família para a Argélia e, em 2008, já comprometido politicamente com a Segunda Rebelião Tuaregue, ao fugir para o Burkina Faso após a execução de dois membros da sua banda. Foi aí que o descobriu Ron Wyman, antigo colaborador de Michael Moore e Bill Maher, encontrando assim um símbolo para o seu documentário “Agadez, the Music and the Rebellion”. Wyman levou Bombino para os EUA, onde lhe produziu metade de um disco que, graças ao acordo de paz entretanto atingido entre os rebeldes e a junta militar que traça o destino do Níger, viria a ser terminado em casa. É esta a história. A música, essa, é quase tão boa: uma investida em modas que se imaginam milenares por um guitarrista capaz de evocar o mais seco em Ali Farka Touré, atmosférico em Manuel Göttsching (Ash Ra Tempel) e esotérico em Richard Thompson.