25 de maio de 2019

John Coltrane “Coltrane ’58: The Prestige Recordings” (Craft, 2019)

No cinema, há um famoso efeito que remonta a 1958: o contra-zoom ou travelling compensado, como se quiser, em que, através de objetivas de foco variável, o movimento da câmara é basicamente contrário ao movimento do zoom. Foi criado para transmitir as sensações de vertigem do protagonista de “Vertigo – A Mulher que Viveu Duas Vezes”, num plano subjetivo, picado, em que, como é óbvio, vemos o chão a fugir de nós e simultaneamente a vir até nós. Transferindo a distorção do espaço para o tempo, será mais ao menos o que face à discografia de John Coltrane decorre da audição de uma antologia como esta, em que fica tudo mais anacrónico mas também mais sincrónico. Porque o que aqui temos – por ordem cronológica e em novas masterizações – não é nada mais, nada menos do que o conjunto das sessões de estúdio lideradas pelo saxofonista ao longo de 1958, de que resultou uma dezena de álbuns editados entre 1958 e 1966: no todo ou em parte, “Soultrane”, “Lush Life”, “Settin’ the Pace”, “Standard Coltrane”, “Kenny Burrell & John Coltrane”, “Stardust”, “The Believer”, “Black Pearls”, “Bahia” e, por fim, “The Last Trane”.

Compreende-se o impulso. Principalmente após a Impulse! ter há coisa de um ano posto ao microscópio uma sessão de gravação perdida – “Both Directions at Once: The Lost Album”, de 1963 – que veio a entrar nas tabelas de vendas. Na altura, Ravi Coltrane dizia ao Expresso: “O meu pai foi imensamente prolífico. O que não quer dizer que, em retrospetiva, se prestarmos bem atenção a cada um dos seus discos, eles não nos pareçam absolutamente necessários.” Neste contexto, teremos é que prestar bem atenção ao determinante possessivo: pois muitos destes discos são mais discos da Prestige do que propriamente discos de Coltrane (que em 1959 tinha já assinado contrato com a Atlantic). Depois de “Fearless Leader” (6 CD, 2006), “Interplay” (5 CD, 2007) e “Side Steps” (5 CD, 2009), dir-se-ia que o retrato do período – no fundo, o culminar da fase em que, nos seus solos mais extensivos, andava de porta-paletes a empilhar arpejos à velocidade da luz – não poderia ficar mais nítido. Mas pode – ainda que Coltrane, pela sua força e instantaneidade, não deixe de produzir vertigens.

Pettersson: Violin Concerto No. 2 (BIS, 2019)

No início dos anos 50, quando estreou o seu “Concerto para Violino e Quarteto de Cordas”, Allan Pettersson foi caracterizado como um “modernista controverso”, um “expressionista sem igual”, um daqueles compositores de obras tecnicamente tão complexas que praticamente obrigavam os seus intérpretes a andar de canivete suíço no bolso. Volvido um quarto de século, quando escreveu este “Concerto para Violino Nº 2”, dava-se por si no asilo dos sinfonistas escandinavos, como se o pós-modernismo não tivesse sido mais que uma lomba que apanhou no caminho – em 1977, de facto, compor para orquestra em regime sinfónico seria tão anacrónico quanto, no cinema, realizar um western passado no século XIX quando o género havia já ingressado na era espacial, com “A Guerra das Estrelas”. Mas, se alguma coisa, a produção de Pettersson veio aos poucos provar que o minimalismo não era a única alternativa ao maximalismo, que o contrário do serialismo, por exemplo, não teria forçosamente de ser o neoclassicismo – aliás, conforme explicava Michael Nyman em “Experimental Music”, e em extrapolação para termos que só mais tarde seriam adotados, era muito provável que Nova Simplicidade e Nova Complexidade se alimentassem uma da outra. 

Não obstante, de acordo com um confidente, Pettersson tentava descrever a “luta do homem comum contra Brejnev” – em plena Guerra Fria, era como se solista e orquestra viessem de cada uma das extremidades do eixo da Terra. Nessa perspetiva, então, explica-se uma aproximação concetual – e, aqui e ali, mais do que isso – ao que fizeram Bartók ou Hindemith, que dramatizaram como poucos o desequilíbrio inerente ao conflito entre estas duas forças. Nas suas próprias palavras: “O ser humano procura escapar a uma realidade em que aquilo que representa é permanentemente apagado por sistemas ideológicos que se manifestam através do homicídio e do fratricídio. É nessa paisagem noturna que se escuta uma canção ao violino”, uma espécie de hino para a emancipação do indivíduo. Trata-se de um tema do ciclo “Canções do Pé-Descalço”, dos anos 40, cujos constituintes são neste concerto aplicados em método recursivo – uma bomba que detonou no caminho rumo ao asilo dos sinfonistas escandinavos. Chamava-se esperança.

18 de maio de 2019

Joshua Redman Quartet “Come What May” (Nonesuch, 2019)

Por volta de 1993, quando Joshua Redman apareceu, a questão da hereditariedade colocava-se de outra maneira, como se o jazz fosse um conjunto de obrigações que se transmite, em vez de uma liberdade pessoal que se reclama. Ainda assim, o saxofonista recusava-se a alimentar aquela crónica mais etiológica da coisa, que apontava para a inevitabilidade de o filho vir a lidar não só com os direitos mas também com os encargos artísticos deixados pelo pai – bem, nessa perspetiva, enquanto objeto psicanalítico, seria mais provável transmutar-se gradativamente em Édipo! Seja como for, não se vislumbra uma estreia tão desprovida de neuroses quanto a sua – e ao segundo disco, “Wish”, a tocar ao lado de Pat Metheny, Charlie Haden e Billy Higgins, parecia nomear-se acima de tudo herdeiro de Ornette. Aliás, na altura, por mais que chamasse a atenção de todos quanto o escutavam para o que aquela gente que tinha sensivelmente a mesma idade que a sua fazia (e James Carter logo salta à memória), a verdade é que Joshua dava mostras de pertencer a uma geração anterior, até, à do próprio pai – como se tivesse mais que ver com quem deu os últimos retoques no jazz enquanto bem artístico, como Don Redman, que efetivamente o precedia em enciclopédias. 

Traía-o o repertório: no seu primeiro álbum, tocava ‘I Got You (I Feel Good)’, de James Brown, bem como ‘Salt Peanuts’ (Dizzy Gillespie); em ‘Wish’, fazia uma versão de ‘Tears in Heaven’, de Eric Clapton; em “Timeless Tales (For Changing Times)”, incluía em alinhamento temas de Joni Mitchell, Bob Dylan, Stevie Wonder ou dos Beatles. Era como se estivesse a acusar precocemente a passagem do tempo. Ato contínuo, em 2001 lança “Passage of Time”. E, agora, com 50 anos acabados de fazer em fevereiro, é aos instrumentistas desse transitório CD que regressa: aos flexibilíssimos mas exatos Aaron Goldberg (piano), Reuben Rogers (contrabaixo) e Gregory Hutchinson (bateria). Não se trata do seu único quarteto no ativo, claro: com Ron Miles (cornetim), Scott Colley (contrabaixo) e Brian Blade (bateria), editou no ano passado “Still Dreaming”, onde põe finalmente em ordem o legado de Dewey Redman. Aqui, transferindo a espontaneidade e a versatilidade novamente do modo de compor para o de interpretar, dir-se-ia honrar, antes, figuras avunculares, como foi sempre Sonny Rollins e como, de repente, aparenta ser Charles Lloyd. Cá está a mesma técnica associativa e disposição oracular, o mesmo desejo de pôr um pé na eternidade, aconteça o que acontecer.

Style & Fashion: A-Class Topnotch Hi Fi Sounds In Fine Style (Soul Jazz, 2019)

Já David Bowie avisava: “There's a brand new dance/ But I don't know its name/ That people from bad homes/ Do again and again/ It's big and it's bland/ Full of tension and fear/ They do it over there/ But we don't do it here”. Estávamos em 1980, a canção chamava-se ‘Fashion’, e, nesse mesmo ano, com a mesmíssima designação, Chris Lane e John MacGillivray fundaram uma editora que se dedicaria a desmascarar o quanto havia de serôdio nos seus versos. “Em vez de imitar tudo o que vinha da Jamaica tentámos incorporar nesta música a experiência dos miúdos de cor britânicos – as histórias que nos contavam pareciam únicas e intransmissíveis, eram relatadas nos seus próprios termos, no seu próprio tempo, mas não deixavam de ser histórias londrinas”, dizem, agora, em notas de apresentação. Ou seja, contrariamente ao que faziam Island, Trojan, Pama, Frontline ou Greensleeves, a Fashion não dependeria de contratações estrangeiras para fazer soar os alarmes da classe média no Reino Unido: os expoentes do seu catálogo – como General Levy, Papa Face, Smiley Culture, Asher Senator, Laurel & Hardy – eram ingleses de primeira geração.

Aliás, tendo em conta esta lista de nomes, na compilação dá-se pela falta de Smiley Culture – logo dele, cuja história de vida dá mostras de envolver alguma verdade importante sobre este tipo de questões (veio a falecer após uma rusga policial de que resultaram ferimentos graves, em 2011, 27 anos depois da Fashion ter lançado o seu ‘Police Officer’). Já a ausência de nomes consagrados que chegavam da Jamaica e que a editora viria a gravar – Carlton Manning, Alton Ellis, Al Campbell, Horace Andy, Johnnie Clarke, Junior Delgado – se explicará à luz dessa narrativa nativista. Principalmente noutro ponto que a Soul Jazz pretende transmitir: que, graças aos seus singles de ragga e dancehall, a Fashion se provou determinante na cena musical britânica por apanhar boleia do jungle em movimento ascendente – ilustram-no na perfeição os temas de General Levy, Cutty Ranks, Poison Chang, Papa Face e Top Cat aqui incluídos. Mas esse é o fim desta história – o início deu-se com ‘Let’s Dub it Up’, de Dee Sharp, em 1980, e com o embalo daquela onda de mel do lovers rock (também com Carlton Lewis e Keith Douglas) que não mais parou de se espraiar.

11 de maio de 2019

Bill Evans “Evans in England” (Resonance, 2019)

Sempre que uma destas pérolas dá à costa, logo vem à memória “Why Didn’t They Ask Evans?”, de Agatha Christie. Pois, a verdade é que até se poderia dar o caso – como uma e outra vez aconteceu – de Bill Evans dizer que sim: desse modo, a legião de engenheiros de som que tirava o curso por sub-repção nos seus concertos, noite após noite, poderia, enfim, destapar os microfones e gravadores que mantinha ocultos sob as toalhas de mesa dos clubes de jazz. Um dos mais famosos reincidentes no delito era um francês a que chamavam “Jo”, um fanático impossível de reabilitar que durante onze anos acompanhou as digressões de Evans pela Europa com material de espionagem atrás – com um Beyerdynamic junto aos pés e um Uher preso entre os joelhos, foi ele que gravou este(s) concerto(s), no Ronnie Scott’s, em Londres, em dezembro de 1969, a tremer de medo e a reprimir a vontade de genufletir, calcula-se.

E não era para menos: um ano depois da tournée com Eddie Gómez e Jack DeJohnette (ouvir, na mesma Resonance, “Some Other Time: The Lost Session from the Black Forest” e “Another Time: The Hilversum Concert”, captados em junho de 1968), Evans apresentava novo trio, com novo baterista, Marty Morell, cujo único crédito digno de nota, embora com direito a errata (no LP lê-se Morrell), advinha da sua participação em “The Sorcerer”, de Gábor Szabó. Acima de tudo, porque, a tocarem juntos há um ano (e, já agora, ainda nesta editora, pode confirmar-se que, aqui, não soam de todo ao que soavam em outubro de 1968, quando ficou registado “Live at Art D'Lugoff's Top of the Gate”), criavam-se, por fim, e novamente, as condições para que Evans tivesse à sua volta gente com que pudesse “verdadeiramente conversar, interagir, dançar, cantar, produzir este tipo de energia cerebral mas muito expressiva”, conforme relata Gómez em notas de apresentação, e como não tinha desde a dissolução do trio com LaFaro e Motian. De facto, há poucos documentos, destes, ao vivo, em que o pianista se entregue incondicionalmente ao momento e desligue o piloto automático, com ponto alto em ‘Sugar Plum’, original cuja presente fixação antecipa a da cronologia oficial (havia sido estreado em 1971, em “The Bill Evans Album”). Histórico, nem que seja por isso.