25 de outubro de 2014

Entrevista a Wayne Shorter



Chamavam-lhe “Mr. Weird”. Ou melhor, “a minha alcunha, na verdade, era ‘Flash’”, explica-nos Shorter ao telefone, entre risos, a partir de sua casa, nas colinas suspensas acima da linha de smog de Hollywood. É um facto. E havia-o já Michelle Mercer esclarecido na biografia “Footprints: The Life and Work of Wayne Shorter”: ele tinha escrito “Mr. Weird” (traduza-se para português como se quiser: “Sr. Esquisito”, por exemplo) no estojo do seu saxofone, e Alan, o seu irmão, dava-se a conhecer como “Doutor Estranho”. A fundamentação abstrata era óbvia: os Shorter julgavam-se um caso aparte, uma símile, até, para a aura de mistério que supunham necessária à criação. E, tratando-se seguramente de um pormenor, não deixa de ser significativo que, na extensa discografia de Wayne, os dois tenham apenas por uma vez gravado juntos, e que esse tema, em 1965 incluído em “The All Seeing Eye”, se intitulasse ‘Mephistopheles’. Somem-se-lhe ‘JuJu’, ‘Speak no Evil’, ‘Prince of Darkness’ ou ‘Down in the Depths’ e quase se pressente uma ominosa presença do mal em muitas das suas construções. “Olhe, tenho uma frase para si”, continua, em jeito de advertência: “Não tente converter o Diabo! Mais vale torná-lo um aliado seu. E é possível, assim, que essa natureza maligna que há em tudo o que nos rodeia lhe venha a ser útil. Mas faça-o num quadro de iluminação, isto é, entendendo sempre a diferença entre o bem e o mal. É trabalho para uma vida inteira, sabe? Mais ainda quando se exerce um ofício que nos obriga à total cumplicidade com o momento.”.

De chofre, Wayne discorre acerca da arte da improvisação, na qual possui uma assinatura especialmente grífica. Esboçou-a entre 1959 e 1963, enquanto diretor musical dos Messengers, de Art Blakey, com os quais lançou “Roots & Herbs”, “The Freedom Ringer” ou “Free for All”, e patenteou-a de modo inequívoco através das sessões que liderou para a Blue Note (duas delas, precisamente “JuJu”, de 1964, e “Speak no Evil”, de 1965, foram este ano alvo de remasterização e reedição em vinil). Depois, expandiu-a ao ingressar no quinteto de Miles Davis responsável por “E.S.P.”, “Sorcerer” ou “Nefertiti” e, por fim, inserido nos Weather Report, abreviou-a gnomicamente no instante exato em que aparentava ter um pé na eternidade. Reconhece retrospetivamente: “Ao longo dos anos, o desafio tem sido mesmo esse: viver o momento. É o mais perto que andaremos de descobrir o que é a vida, de celebrar o que ela contém de mais original e de aceitar esse estranho compromisso em que se tenta representar o enigma da existência. Exprimimo-nos normalmente em termos dualísticos mas a mim preocupa-me mais sublinhar o que há de comum em tudo aquilo que nos separa.”.

Discursa lentamente, como um místico. Ensaia sentenças que lembram slogans publicitários e arrisca longas tiradas destinadas a pôr a nu todo o tipo de paradoxos: “A realidade das coisas é que nada é descartável. É o seu valor que está em trânsito. Isso e perdermos de vista a sua função. É como uma sociedade a debater questões de mau-comportamento. Pode puni-lo, mas conseguirá aprender com ele?” O retrato que esboça desde a sua mansão de cristal no Olimpo é de crise permanente: “Dizia há dias a uns amigos que é como num divórcio: se não tens noção de que a tua ex-mulher é a tua próxima mulher, então não vale a pena. Ou seja, que importância tem, na tua vida, o conhecimento?”.

Em Shorter cruzam-se continuamente códigos contraditórios: atentando às suas composições pressupõe-se um constante fluxo de obtusas ruminações nilóticas, obscuras aparições orientalistas, arcanos arrepios de um feiticeiro, futuristas fórmulas de um matemático. Escreveu um tema a que chamou ‘Os Mouros’ e outro que apelidou de ‘Lusitanos’. “Há uma geração atual que fala para dentro”, desabafa subitamente: “Investiga, estuda… E a sociedade não tem nenhuma interrogação a fazer-lhe. As pessoas não estão familiarizadas com aquele adágio do Einstein em que se relativiza genialmente a mente humana: a prova de que ela existe é justamente essa, a de ser capaz de contrariar as certezas em que se escora. E é isso que eu tento tocar!”.

Menciona práticas culturais distintas, viagens, línguas. “Acredita que não sei português?”, pergunta. “Nunca o aprendi! [Shorter viveu 30 anos com uma portuguesa, Ana Maria Patrício, que viria a falecer no desastre aéreo do voo TWA 800, em 1996, e mais tarde veio a casar com a brasileira Carolina dos Santos, sua companheira até hoje; em 1974, na órbita do Clube da Esquina, gravou “Native Dancer”, com Milton Nascimento, Wagner Tiso ou Robertinho Silva] Mas quando o ouço a ser falado ele faz-me viajar. Navego pelos seus sons e ritmos. É como escutar um conto de fadas. Isso interessa-me. Ensinam-nos que com a morte tudo acaba, que não há cá a história do ‘E viveram felizes para sempre’. Mas, porque não? O que nos garante que o conto de fadas não pode ser a realidade? Não é essa a grande lição da arte?”.

Fomos convidados para um evento na Universidade de Stanford”, prossegue, tentando chegar ao cerne do problema. “Discutia-se o acelerador de partículas, o Bosão de Higgs, etc, e um astrofísico diz-me: ‘Nós, cientistas, conduzimos agora o nosso trabalho de maneira artística, improvisando, dir-se-ia. Aprendemos com música como a sua’. Porque já não é só a tese cosmológica do Big Bang. É o antes. O multiverso por oposição ao universo. O que me recorda outra coisa”, recomeça: “Fui um dos homenageados na Achievement Summit deste ano. E durante um par de dias, na convenção, entre alocuções, palestras e conferências, colocar as artes e as ciências exatas em pé de igualdade pareceu a coisa mais natural do mundo. Estamos todos a trabalhar num sentido.” Demora-se nos detalhes, conta como foi, que estava lá o George Lucas e a Diana Ross, que tocou com Esperanza Spalding, e, sem interromper o raciocínio, conclui: “Trabalhamos para que o mundo compreenda que somos todos absolutamente individuais. E que se perceba que o futuro depende de aumentarmos a nossa aptidão em negociar com o desconhecido. Por isso não há forma de recorrer ao convencional, a estratégias gastas. Tem tudo a ver com dança. Com movimento. É uma alternativa à passividade. Temos de tomar a dianteira em tudo o que nos diz respeito. Porque nós somos educados a adormecer, já reparou? Desde pequenos, no berço, não há nada que os nossos pais mais desejem. Que passemos a vida a dormir. Mas o nosso trabalho”, repete, “é a nossa responsabilidade. E a nossa responsabilidade é a de fazermos as coisas de acordo com os nossos próprios critérios de avaliação.”.

Com Shorter, tempo e espaço deslizam. Muitos olharam para a sua obra como uma emanação da Providência. Outros, no que vai dar ao mesmo, notavam indícios de uma inteligência particularmente alienante. Os assuntos sucedem-se – astronomia, geometria, xadrez – e o que se imagina é a serpente que morde a sua cauda. A conversa estende-se, duplicamos praticamente os vinte minutos que tínhamos reservado e acaba assim: 

Compôs para a Orpheus Chamber Orchestra, não foi?
Sim. Adoro-os. São tão democráticos. Há paridade a todos os níveis. E isso motivou-me. O quarteto está lá, claro [Shorter, com Danilo Pérez ao piano, Brian Blade na bateria e John Patitucci ao contrabaixo], mas eles jamais estarão em segundo plano. Tem piada. Reuni-me com um representante da orquestra e ele disse-me: ‘Sr. Shorter, já sei como é que vamos conseguir fazer isto’. E eu respondi-lhe: Ah, sim? Como? Ele vira-se para mim e diz: ‘Shazam!’ E põe-me um boneco do Capitão Marvel à frente! E entretanto mandou-me pelo correio um Lanterna Verde. Sabe o que isso quer dizer, não sabe?

Que ele também crê no multiverso? Wayne Shorter ri-se e a chamada cai.

Les Ambassadeurs du Motel de Bamako (Sterns, 2014)



Foi uma espécie de propedêutica para tempos de paz, o melhor da produção dos Ambassadeurs. Captada entre 1975 e 1977, cá está a cartilha do pão, habitação, saúde e educação, mas aqui se encontra, também, muito daquilo que ultrapassa panegíricos encargos da praxe: num momento em que se procurava identidade nacional, apresentava-se um quadro referencial marcado por multietnicidade e pluriculturalismo; quando se estimulava o orgulho pátrio, promoviam-se valores comuns a toda a África Ocidental; numa conjuntura em que se impunha a apologia política, e sob influência direta do tenente Tiékoro Bagayoko, patrono da banda e mandante no regime de Moussa Traoré, abordava-se a problemática da emigração e falava-se na obrigação de transparência no exercício de cargos públicos. A música, essa, não era menos transgressora. Isto é, o palco do bar do Motel de Bamako não era só a expressão da doutrina governamental de incentivo às artes sob o folclórico signo da ‘autenticidade’. Pelo contrário, mantendo uma disposição mandinga, estes embaixadores – Salif Keita, Manfila Kanté, Idrissa Soumaoro, Osmane Dia, “Vieux” Sissoko, Kélétigui Diabaté ou Amadou Bagayoko, malianos, guineenses e senegaleses – faziam incursões na tradição afro-cubana e na chanson, emulavam as bandas inglesas no seu processo de aculturação do r&b, invocavam o nacionalismo afro-americano e levavam a que os seus ouvintes descobrissem as múltiplas dimensões da sua própria música através da música dos outros. Este verão, reuniram-se os sobreviventes para concertos na Europa enquanto no Mali desaparecia tudo aquilo pelo que pugnaram.

18 de outubro de 2014

Dvorák: Symphony Nº 6; American Suite (Harmonia Mundi, 2014)




Luzerner Sinfonieorchester, James Gaffigan (d)


Em 1922, com ‘Goin’ Home’, e não obstante ser justamente isso o que aparentava fazer, Williams Arms Fisher não se limitou a transferir uma famosa figura melódica da sinfonia que Dvorák compôs em 1893, e nomeou ‘Do Novo Mundo’, para o domínio dos ‘espirituais negros’. Ao invés, criando condições para que a obra do checo, seu antigo professor no Conservatório Nacional, em Nova Iorque, regressasse à ‘casa de partida’, propôs uma deslocação que se movia em sentido contrário. Agiu, claro está, com um atraso de 30 anos, quando o seu mentor tinha já, há 18, falecido e numa altura em que era evidente que não se iria cumprir o desígnio pelo qual, entre 1892 e 1895, fixou residência nos EUA: a fundação de uma ‘escola clássica’ de matriz afro-americana. Na Europa, também em 1922, e a propósito do “espírito americano”, atente-se ao que escrevia Adolf Weissmann em “Die Musik in der Weltkrise”: “Reclama por uma vida musical própria, mas adora espetáculo e emoções fortes, não se interessa por abstrações, é subjugado pelo dinheiro e só agora acomoda noções de bom gosto”. É como se Dvorák tivesse andado a pregar no deserto. Mas sai ocasionalmente um CD, como este, que permite que se coloquem as coisas no sítio certo: eis a “Sinfonia Nº 6”, em Ré maior, de 1880, povoada de paradoxos, como se tivesse vindo ao mundo para desmascarar a hipocrisia vienense e denunciar a malquerença, e, justaposta, a “Suíte em Lá maior”, dita ‘A Americana’, de 1895, polvilhada de promessas, como que dedicada ao que de mais digno há na ideia de progresso. Ficou a primeira presa à realidade e a segunda associada à utopia. O problema foi precisamente esse.

Sun Ra and His Arkestra “Marshall Allen Presents: In The Orbit Of Ra” (Strut, 2014) & Sun Ra “The Complete Remastered Recordings On Black Saint & Soul Note” (Cam Jazz, 2014)




Não se imagina a azáfama. Afinal, agindo por impulsos que possuem tanto de mecânico quanto de alquímico, cruzar-se-ão hoje à tarde cerca de 50 pessoas no palco do Teatro Maria Matos. Mas se há instantes na vida de uma instituição em que se impõe grandiloquência no gesto, e em que se aconselha a sanidade a ficar à porta, este será um deles. Pedro Santos, programador na sala lisboeta e principal ideólogo da matiné, confessa ter-se deixado mover por uma força irresistível: “Foi a resposta a um desafio que nos propusemos: ‘Depois de comemorarmos os 100 anos de John Cage, em 2012, que centenário poderíamos agora assinalar que fosse tão ou mais relevante do que esse?’ A escolha era óbvia.” Tal como o passo seguinte: “Convidar músicos a repensar a sua própria música através dos códigos de Sun Ra.” Lançado o repto de infinitas matizes a Nuno Rebelo, Bruno Pernadas, Mo Junkie e Gala Drop, as expetativas são consideráveis. Rebelo comandará uma pequena orquestra em que se inserem um coro de câmara e instrumentistas recrutados no Conservatório Calouste Gulbenkian, de Braga, e, diz-nos, conferiu ênfase às “canções de Sun Ra”, optando por renunciar ao “território da improvisação”. Pernadas, que liderará uma formação de dez elementos e dois vocalistas, conta ao Expresso que teve como objetivo “criar algo novo a partir das ferramentas que caracterizam [a produção de Ra]”, e elenca os constituintes que lhe aguçaram o engenho: “Desenvolvimento melódico, impacto sonoro, polifonia, ideia de continuidade, improvisação coletiva, não-repetição estrutural, ritmo, dinâmica, textura e cor”. Como mantra, acrescenta, uma fórmula um dia saída da boca de Ra: “Se a natureza nunca se repete, porque haveria eu de me repetir?” A mesmíssima pluralidade atraiu Mo Junkie, que nos refere um fascínio “pelas temáticas filosóficas e cósmicas associadas à forma de [Ra] pensar a música e, sobretudo, pela essência diversa dos sons” de que se socorria. Apropriadamente, não nos oculta que foi difícil “encontrar a equação para juntar ao puzzle”, ou não tivesse Ra transitado continuamente entre as questões de ciência e as da fé, privilegiando ora o estudo e o conhecimento, ora o que passava por incultura e intuição. Ou melhor, por uma cultura tão única que dava mostras de não ter possuído precedentes ou de ter gerado efetiva subsequência. É o que nos relatam os Gala Drop, quando afirmam estarem “cientes da sua grandeza e da impossibilidade em emular ou, sequer parcialmente, tentar recriar a sua obra”. Na solução alvitrada pela banda ressoa uma das diretivas do homenageado: “Criámos música informada por Sun Ra mas que julgamos ser nossa.” Nenhuma vez exigiu ele outra coisa a alguém.

Mas Sun Ra, que faleceu em maio de 1993, permanece um enigma. “In The Orbit Of Ra”, um templo de epifanias, retrata esse xamã do insólito e não se dirige exclusivamente a neófitos. Tem um som que supera, até, o das reedições em CD da Evidence, dos anos 90, e um trio de versões inéditas, entre as quais uma ‘Trying To Put The Blame On Me’ em que, sozinho ao piano, Ra canta: “Sinto-me só/ Tão só/ Como uma espécie diferente de ser”. Aí, num ambiente tão perfumado de ais que se diria evocar com ironia as canónicas lamúrias do blues, não deixa de sair reforçada a mais evidente distinção da sua carreira: a sujeição ao signo da alteridade. Como se sabe, desde que nasceu (a 22 de maio de 1914, em Birmingham, no Alabama) que Sun Ra desertou progressivamente do quotidiano. E não custa sugerir que foi o facto de ter crescido na mais segregada cidade dos EUA aquilo que originou a sua conversão ao inaudito. Isso, e a presunção de ilegitimidade que sempre o acompanhou ligada a uma perturbação congénita: a criptorquidia, que lhe causava permanente mal-estar e que cedo transformou numa prova de individualidade. Daí, também, uma obsessão com os limites do corpo (não há menção a encontros sexuais seus) e a reincidência no separatismo enquanto fonte de poder e fundamentação cosmogónica. Partindo desta compilação e saltando para a integral das suas gravações para a Black Saint e Soul Note, fica patente que, não sendo bem daqui ou de tempo algum, como proferia, a sua música foi provocadoramente inquisitiva mesmo à luz da que lhe era contemporânea e ocasionalmente enformava. Mascarava-se de jazz, é certo, mas convocava igualmente tudo o que lhe permitisse libertar-se do vácuo criado pela exclusão. Assim, num momento em que nem uma nem outra tinham lugar à face da terra, o vernáculo da vanguarda confundia-se com a arte mais arcaica e, num compêndio de subtilezas, funcional mas jamais frívola, a Arkestra, que era a sua família, parecia renovar o esplendor, a nobreza e a elegância com que Fletcher Henderson ou Duke Ellington, por exemplo, haviam escapado ao anonimato. A sua missão, deixada num verso, era “criar um novo mundo para cada um”. Hoje, em Lisboa, passa de mão tal encargo.