29 de dezembro de 2012

Melhores do Ano (Best World and Brazilian Music Albums of the Year)


“African Electronic Music 1975-1982” Francis Bebey (Born Bad)
“La Voix de la Révolution” Sory Kandia Kouyaté (Sterns)
“Metal Metal” Metá Metá (Desmonta)
“Bahia Fantástica” Rodrigo Campos (YB Music)
“He Is #1” Malawi Mouse Boys (Irl)
“Junk Funk” Sotho Sounds (Riverboat)
“Bouger le Monde” Staff Benda Bilili (Crammed)
“Abraçaço” Caetano Veloso (Universal)
“Dancing Time: the Best of Eastern Nigeria’s Afro Rock Exponents 1973-1977” The Funkees (Soundway)
“Subway Salsa: the Montuno Records Story” (Vampisoul)
+
“Le Mystère Jazz de Tombouctou” Le Mystère Jazz de Tombouctou (Kindred Spirits)

“Organic Music Society” Don Cherry (Caprice)
“Avanço” Tamba Trio (Soul Jazz)
“Danger” Lijadu Sisters (Knitting Factory)
“24 Hours in a Disco: 1978-82” Kiki Gyan (Soundway)

Notáveis em 2012: Michael Tilson Thomas e a San Francisco Symphony na “Harmonielehre” de John Adams (SFS), o Callithumpian Consort na “Songbirdsong” de John L. Adams (Mode), os Músicos do Tejo na “La Spinalba” de Francisco A. de Almeida (Naxos), os Feldman Soloists em “Crippled Symmetry” de Morton Feldman (Frozen Reeds), Foxes Fox no “Live at the Vortex” (Psi), Barry Guy e Maya Homburger em “Tales of Enchantment” (Intakt), Jeremy Denk com “Ligeti/Beethoven” (Nonesuch), Joe McPhee em “Sound on Sound” (Corbett vs. Dempsey), Simon Nabatov nas “Spinning Songs of Herbie Nichols” (Leo), Kristin Norderval com “Aural Histories” (Deep Listening), Ivo Perelman e Sirius Quartet em “The Passion According To G.H.” (Leo), Tianwa Yang e Nicholas Rimmer nas “Complete Works for Violin and Piano” de Rihm (Naxos), a Finnish Radio Symphony e Leila Josefowicz em “Out of Nowhere” de Salonen (Deutsche Grammophon), Wadada Leo Smith com “Ten Freedom Summers” (Cuneiform).

22 de dezembro de 2012

Sotho Sounds “Junk Funk” (Riverboat, 2012)


Há na estética do ruído uma atração estocástica pela máquina que importa questionar. E, não interessando agora traçar-lhe a exata precedência, o que une os intonarumori de Luigi Russolo às hélices do “Ballet Mécanique” de George Antheil, as sirenes de Edgard Varèse às investidas de John Cage por ferros-velhos ou a ‘Revolution 9’ dos Beatles à ‘Kollaps’ dos Einstürzende Neubauten pode sintetizar-se nestes termos: diletantismo apocalíptico, perturbação de signos musicológicos, intensificação e descontextualização de códigos sonoros da era pós-industrial, culto da indeterminação ou representação artística dos valores da contracultura. E convém referir tudo isto a propósito de um conjunto de pastores das cordilheiras do Lesoto para que não restem dúvidas que a sua ação – tal como a de Staff Benda Bilili com o seu metálico santongé, a de Konono Nº1 com os seus likembes eletrificados ou a das bandas de “Karindula Sessions” com os seus bidões de gasolina – apenas procedimentalmente se filia numa linhagem de dissensão. É que não será a coincidência com um dos seus aspetos centrais – a utilização de instrumentos pouco convencionais – que a conduzirá a considerações que, na prática, em tudo contraria. Pois dificilmente se encontra em 2012 tão universal demonstração daquilo que está na origem de toda a música. Por isso, bocados de sucata soldados com um lava-loiça em forma de tambor, uma chapa que se fricciona como uma rabeca ou tábuas com fios de arame pregados como cordas numa guitarra podem aqui estar apenas por extrema necessidade e cumprir vicária vocação, mas quem lhes toca fez deles precisamente o que queria: a mais espiritual e extravagante reunião de polifonia basoto com a música coral, de pífaros e de concertina sul-africanas, praticamente dispensando todos os seus constituintes para atingir os mesmos fins. A vanguarda é isto.

Ravi Shankar (1920-2012)

(David Redfern/Getty)


Em 1775 Voltaire escreveu: “estou convencido de que tudo o que nos chegou veio das margens do Ganges”. E Goethe, Schopenhauer, Emerson ou Thoreau, inclinados para o idealismo transcendental ou apenas seduzidos pela pura intelectualidade do hinduísmo, contam-se entre aqueles que contribuíram para uma certa disposição ‘indomaníaca’ a ocidente, posteriormente reiterada pelo impacto da obra e pensamento de Aldous Huxley, Hermann Hesse, J. D. Salinger ou Allen Ginsberg. É como um dos mais vibrantes sintomas dessa tendência e inscrito no contexto específico da década de 60 – quando se renovavam valores essenciais à ação de uma contracultura em que, curiosamente, a dissensão política, a crítica social, a denúncia da ortodoxia institucional ou a rejeição doutrinal andavam de mãos dadas com movimentos teosóficos – que despontou o sitarista e compositor Ravi Shankar enquanto incontornável símbolo de eminência espiritual, capaz de tornar quem o ouvia mais sensível ao prazer e mais compreensível face à dor.

Talvez por isso tenha sido uma presença tão crucial quão absolutamente transversal nas mais exóticas criações da música popular (influenciando canções como ‘Within You Without You’, dos Beatles – deu aulas de sitar a George Harrison –, ‘Paint it Black’, dos Rolling Stones, ‘Eight Miles High’, dos Byrds, ou ‘The End’, dos Doors), em algumas tangentes fusionistas no jazz (de embrionárias experiências com Bud Shank à tutela de um peculiar orientalismo em Don Ellis, John McLaughlin ou John Coltrane, que em sua honra batizou como Ravi o seu segundo filho), em bem-sucedidas fugas ao cânone erudito (confirmadas nas parcerias com Yehudi Menuhin, André Previn, Zubin Mehta, Jean-Pierre Rampal ou Philip Glass) ou, no que foi a regra e não a exceção, no contínuo aprofundar de toda a música clássica indiana, que, como ninguém, disseminou. Tudo isto – incluindo “East Greets East”, um diálogo com instrumentistas japoneses editado pela Deutsche Grammophon em 1978 – muito antes do ecletismo transfronteiriço se ter tornado no emblema de esclarecida mundividência artística que é hoje. 

Nascido em 1920 numa família brâmane, Shankar viajou por cidades europeias e norte-americanas na trupe do seu irmão, Uday. Tornou-se discípulo de Allaudin Khan e, já entre Bombaim e Deli, trabalhou para a  rádio nacional, gravou discos e compôs para a ‘trilogia de Apu’, do cineasta Satyajit Ray. Em finais dos anos 50 começou a apresentar-se regularmente no estrangeiro. Reconhecido como um virtuoso por mediáticas figuras, tocou nos festivais de Monterey e Woodstock – e desse tempo de consciências expandidas artificialmente, em que cumpriu um papel determinante mas algo equívoco, fica uma esclarecedora declaração sua ao jornal californiano “KLRA Beat”: “ao público só peço umas horas de sobriedade!”. Lecionou em prestigiadas universidades, organizou o “Concerto para Bangladesh”, fez a banda-sonora de “Ghandi”, recebeu centenas de distinções académicas e culturais e criou uma Fundação. Faleceu a 11 de dezembro, de complicações respiratórias e cardíacas. Sobrevivem-lhe esposa, netos, bisnetos, as filhas Norah Jones e Anoushka Shankar, e todos aqueles que o levaram à letra quando abreviou a grafia em sânscrito do seu nome, Ravindra, para Ravi: sol.

15 de dezembro de 2012

Criolo "Nó na Orelha" (Sterns, 2012)



São as primeiras palavras que se ouvem no disco: “Fique atento, irmão!/ Fique atento quando uma pessoa lhe oferece um caminho mais curto”. E, apocrifamente, nelas se lê um recado para aqueles que, nunca tendo considerado o género, encontraram em “Nó na Orelha” um atalho para a fruição do rap. Porque não só o tipo de aclamação mediática que, ao longo de 2011, gerou este segundo álbum de Criolo costuma produzir efeitos contrários aos esperados, como se baseia, frequentemente, em considerações ilegítimas. E não andará longe da verdade quem identifique no consenso que uma enxurrada de prémios confirmou (Bravo, MTV, Prémio da Música Brasileira, Rolling Stone, etc) uma premissa equívoca: a de que o impacto epocal aqui alcançado só foi possível pela evocação de um conjunto de referências (no caso, afrobeat, bolero, música etíope ou reggae) tidas como exteriores às mais típicas configurações do hip-hop. Ou seja, um pouco como o que em Portugal se passou há 10 anos atrás com “Beats Vol. 1: Amor”, de Sam the Kid, o sucesso mais alargado de um MC junto da imprensa generalista depende da aceitação tácita de uma condição intelectualmente desonesta: a de que o hip-hop mais não é do que um (quiçá, poético) ato de recontextualização do efémero. Criolo parece não só sabê-lo como esperá-lo, nesta sua ação em tudo transversal que finalmente chega ao mercado europeu. E reforça uma fragmentação de conteúdos em que o estatuto periférico é a própria mensagem, numa perversa descontinuidade narrativa que sublinha a dimensão social de toda a cultura, numa desarmante estilização de estratégias de linguagem que põe preconceitos a nu ou na intensificação da música como uma construção dos sentidos em que tudo possui uma função cognitiva e onde não há uma palavra ou um som que não representem inteligentes recursos retóricos. Um tratado de semiótica.

8 de dezembro de 2012

"50 discos que toda a gente deve ouvir"

O Expresso publicou listas com 50 discos de música popular, jazz e música erudita elaboradas pelos seus críticos (Ana Rocha, João Lisboa, Jorge Calado, Jorge Manuel Lopes, Raul Vaz Bernardo, Ricardo Saló, Rui Tentúgal) com a melhor das consequências: a salvaguarda da subjectividade. A mim pediram-me para escrever sobre o "disco da minha vida" ("Milagre dos Peixes") + sete dos meus preferidos + um (o de Carlos Paredes).




THE MUSIC OF THE BA-BENZÉLÉ PYGMIES
Bärenreiter-Musicaphon, 1966
No segmento de “Four American Composers” consagrado a Meredith Monk, Peter Greenaway pergunta-lhe se há um elemento arcaico nas suas composições. Monk anui acrescentando que buscou inspiração no muito primitivo mas também no futurista, criando uma linguagem onomatopeica que, crê, tanto lembra populações antigas como antecipa diálogos interplanetários. Podia estar a descrever as canções dos pigmeus. E disso se lembrou Herbie Hancock quando, com o porvir em mente, gravou “Head Hunters” – certificado com o galardão de ouro – utilizando uma melodia ouvida neste LP. É música vocal da, e para a, floresta tropical centro-africana, com os seus ciclos, sonhos, prazeres e desgraças. E, desde a sua descoberta, de Madonna aos Deep Forest, serviu, sem nada pedir em troca, os interesses dos guardiões da Era Aquariana. Quem a ouve deve-lhe a vida.


GUITARRA PORTUGUESA
Carlos Paredes
Columbia, 1967
Irrompe por séculos, atravessado que está por poéticos modalismos medievalistas, decantados fraseados românticos, enlevos líricos de puro virtuosismo, elegantes melodias renascentistas ou reprocessadas rapsódias folcloristas. E, numa configuração exclusiva à Lisboa dos anos 60, tempera esses elementos com uma atitude de resistência e um desejo de transformação da sociedade tão modernistas quão socialistas. É o som do cinema novo, da libertação da guitarra face ao fado (legado crucial da família Paredes) e da insubmissão cultural. É um clamor contra a vida agrilhoada, um ato de paixão de um homem que tinha aversão a canções de amor e a chamada para a revolução que ninguém ouviu. Um governo, em ditadura, atirou o seu autor para a cadeia e outro, em democracia, devolveu-o aos arquivos do Hospital de São José. Foi nosso e nunca o merecemos. 


GAMELAN SEMAR PEGULINGAN - GAMELAN OF THE LOVE GOD
Nonesuch Explorer Series, 1972
Uma floresta virgem de gongos, sinos e bambu para contar a criação do mundo, capaz de “expressar todas as matizes, até as inomináveis, fazendo com que as nossas tónica e dominante pareçam fantasmas”, como escreveu Debussy numa carta endereçada a Pierre Louÿs. Da sua “Pagodes” às “Gnossiennes” de Satie, da “Miroirs” de Ravel ao “Mikrokosmos” de Bartók, do piano preparado em Cage ao “Concerto para dois pianos” de Poulenc, do “Prince of the Pagodas” de Britten à “Turangalîla” de Messiaen ou da repetição em Reich à heterofonia polifónica em toques de telemóveis, há uma narrativa ocidental que às delicadas filigranas da orquestra de gamelão indonésia retorna como a um primeiro amor. Nunca como aqui – numa recriação planeada por etnomusicólogos quando a sua prática estava já abandonada – soou tal dedicação tão etérea, esotérica, exótica e necessária.


 MILAGRE DOS PEIXES
Milton Nascimento
Odeon, 1973
E depois de 1972? Daqueles doze meses em que eclodiu num só país matéria capaz de suplantar as reservas de criatividade e fantasia armazenadas no mundo inteiro, conforme, para citarmos meia-dúzia de obras-primas, comprovam “Acabou Chorare” dos Novos Baianos, “Vento Sul”, de Marcos Valle, “Expresso 2222” de Gilberto Gil ou os homónimos álbuns de Arthur Verocai, Jards Macalé e João Gilberto? E o que poderia Milton acrescentar à arquitetura daquele edifício nesse mesmo ano enraizado num “Clube da Esquina”, sedeado na confluência da Rua Divinópolis com a Rua Paraisópolis, em Belo Horizonte, em que se combinou lição processual aprendida nos Beatles, conceção filosófica lida nos índios, a mensagem de humanismo da nueva trova, o anseio de liberdade dos caiapós, tambus e dos sem-terra e em que se alinharam as mais essenciais forças criativas de uma geração em tudo periférica? Nunca se saberá. Porque a verdade é que a ação repressora da ditadura militar, no seu período mais feroz, censurou quase integralmente as letras de “Milagre dos Peixes”. Sobra uma quadra aqui, um verso acolá, provas da inutilidade do ódio, do medo, da hipocrisia, de que todo o terror e atrofia espiritual são provisórios. Ao prescindir de palavras, Milton (e Naná, Novelli, Wagner Tiso, Paulo Moura, Nelson Angelo e Robertinho Silva), remetido para uma caverna de gritos mutilados, cantos primordiais e choros de guerra enquanto lá fora se queimavam livros, criou um manifesto de subversão em que todos os resistentes encontraram as polissémicas cifras para o que procuravam. Na mais politizada das mensagens, sugeriu que esta música se podia ouvir separada das ideias acerca de si construídas. E relembrou que, privado da fala, o Homem não regride a uma condição primitiva; imitando sons da natureza, evoca sempre as emoções que a natureza desperta. E lembra que o processo da procura da beleza possui, por si só, o mesmo valor cultural intrínseco ao de qualquer outro. “Milagre dos Peixes”, encurralado, libertou-nos da retórica, criando o ouvinte puro no mais maculado dos tempos.

LO DICE TODO
Grupo Folklorico Y Experímental Nuevayorquino
Salsoul, 1976
Chegar de uma ilha em que até as pedras cantam para andar calado pelo cimento. Vir da pérola do Caribe e ficar escondido na sombra de arranha-céus. Recordar aquele país lindo e trigueiro e viver com vergonha da pele morena. Não. E menos ainda a partir da “grande urbe latinocaribenha chamada Nueva York”, como lhe chamou Enrique Romero em “Salsa: el orgullo del barrio”. De facto, para o efémero grémio de porto-riquenhos, cubanos e brasileiros envolvidos em “Lo Dice Todo”, tratava-se aqui de excarcerar comunidades, inventar uma nova cultura (numa espécie de folclore tão distópico quão inclusivo) e dar corpo a uma panfletária oração por ora sintetizada em sons: crus, vibrantes, catárticos, sincréticos, capazes de arrancar o Bronx do chão e replantá-lo na África Ocidental, ou do inverso. Tocar, como se fosse a música o próprio sangue. 


LE QUART DE SIÈCLE DE FRANCO DE MI AMOR
Franco & Le TPOK Jazz
4 Vols. Edipop, 1981
Acordes telintam, anunciando “cidadão, mostra respeito a dançar comigo!”, na interjeição de uma mulher que, aplicando um sermão sobre decoro na pista de dança, conclui “estou aqui porque não resisto à OK Jazz!”. Sob uma chuva miudinha de guitarras elétricas, enrola cada sílaba na ponta da língua e arruma o assunto em dois minutos e meio – faltam 15 para a canção terminar. ‘Bina Na Ngai Na Respect’, nesta celebração dos 25 anos de carreira de Franco, representa exemplarmente uma singular disposição sinfonista na rumba congolesa (o seu autor gravaria ainda quatro LP com Tabu Ley Rochereau e só em 86 editaria seis álbuns em que dificilmente se encontram temas com menos de 10 minutos). Triste, autoexilado, às avessas com Mobutu, e cada disco revela-se um portento de liberdade e invenção, oxigénio para um continente inteiro em lenta asfixia.


EN CONCERT À PARIS VOL.1
Nusrat Fateh Ali Khan
Ocora, 1986
Um ocidente enfermo, e até à imprensa norte-americana, que o viria a adotar, este ‘Rei da abertura ao sucesso’ chegou com ardor messiânico, não obstante advertências do género ‘ignorem a mensagem e concentrem-se no som’, o que excitava os sentidos mas negava-lhes o êxtase. Ao vivo, o espírito do paquistanês mais pesado em palco intoxicava-se com Alá, o Seu profeta, santos sufis, e levitava. E se lhe perguntavam qual era a mensagem, ele respondia: “humanidade”. Num gelado novembro de 1985, em Paris, o seu melismático canto ondulou sobre uma procissão de vozes, harmónios e tablas e mostrou o caminho para a felicidade. Mais de dez anos depois, no Instituto do Mundo Árabe, um empregado da Radio France tentava explicar-me o que sentiu ao vê-lo no Théatre de la Ville numa dessas noites e perdeu-se, absorto, os olhos cheios de lágrimas.


THE ROUGH DANCER AND THE CYCLICAL NIGHT (TANGO APASIONADO)
Astor Piazzolla
American Clavé, 1988
Anos de luta, amargura, ressentimento, triunfo e fama para isto. Regressar à Nova Iorque da sua infância, à cidade que, quando em Buenos Aires o tinham como assassino, lhe serviu de casa longe de casa, e encontrar nos bolsos um arsenal para sobreviver nas ruas: o tango enquanto morada do exílio, louca balada apátrida vociferada nas esquinas, manual do desejo mais sórdido. Uma doença do espírito para lá de geografia, natureza e comportamentos adquiridos. “Ponham-vos raiva e uma arma nas mãos a ver se vocês não disparam”, disse-me em 1998 Kip Hanrahan, o produtor, referindo-se a este disco. “A vida a acabar e ainda tudo por fazer”, dizia-lhe Piazzolla. Tanta beleza, tanta paixão, um crime e um milagre: 100 anos num par de mãos, um casal trancado num abraço fatal, música mais pesada do que a noite e um menino grande a ser criança pela última vez.

NEW ANCIENT STRINGS – NOUVELLES CORDES ANCIENNES
Toumani Diabaté with Ballaké Sissoko
Hannibal, 1999
Para se compreender a importância deste álbum há que viajar até à sua fonte. Não propriamente até ao século XIII e à formação do Império do Mali, a que remonta tematicamente parte do seu material, nem ao XVII, quando, no reino do Gabu, surgem relatos desta harpa de 21 cordas, na qual, conforme disse Ablaye Cissoko, se depositaram as “bibliotecas de África”. Não: basta ir até 1970, e aos duetos de kora registados por Sidiki Diabaté e Djelimadi Sissoko, pais de Toumani e Ballaké, em “Cordes Anciennes”, lançado pela Bärenreiter-Musicaphon ao lado de volumes dedicados a tradições fulani, songhai e mandê, à música popular do Ensemble Instrumental du Mali e a expoentes de música moderna como as orquestras regionais de Ségou, Mopti, Sikasso e Kayes ou a Rail Band. E verificar que a ação desse tempo em tudo difere daquela encetada no final da década de 90. Se a primeira correspondia a um impulso de vale-tudo arquivista sob os auspícios da UNESCO (com a música do Mali a encontrar abrigo nas grandes capitais culturais europeias enquanto os seus autores, como Boubacar Traoré, procuravam pelas suas ruas emprego na construção civil), já a segunda implica reconhecer-se a existência de uma música clássica maliana com pelo menos oito séculos, revista segundo preceitos que não ficam aquém daqueles que, por exemplo, conduziram Jordi Savall à recuperação de cancioneiros medievais e trovadorescos. Ou seja, produzir a mais cristalina evocação, em formas eminentemente contemporâneas (acentuando cadências, fluências melódicas, cruzamentos rítmicos, texturas polifónicas), de uma rara catedral de tolerância e devoção edificada na órbita do sagrado e, porventura, civilizacionalmente arruinada em todos os domínios que não os artísticos.