Percorrendo
esta exposição consagrada ao arquivo fonográfico, fotográfico, tipográfico e
audiovisual da ECM, descobre-se, de facto, uma peculiar sede de conceções frequentemente
organizada em torno de dois impulsos primordiais: itinerância e transparência. E
algumas das mais cruciais construções culturais promovidas pela editora traduzem
as fricções geradas pela negociação entre esses estímulos. Pois, no fundo, é sobre
uma radical zona de fronteira (de fissão mais do que de fusão) que muitas vezes
se fala quando surgem referências às distintas características – estéticas,
éticas, acústicas, acusmáticas – disseminadas pelos seus discos ao longo de
mais de quatro décadas.
Alude
a tal um depoimento do tunisino Anouar Brahem em “Sounds and Silence: Travels
with Manfred Eicher” (sala 4; documentário de 2009 realizado por Peter Guyer e
Norbert Wiedmer a partir de filmagens captadas em três anos de viagens e
sessões de gravação ao lado do diretor artístico e cofundador da ECM): “sinto-me
atraído por instrumentos orientais e ocidentais e, na realidade, preciso de
ambos”, desenvolvendo posteriormente a noção de que atravessar uma fronteira
implica sempre uma alteração da perceção; isto é, uma disponibilidade para
compreender que, por exemplo no Médio Oriente, “o que para uns representa um
ato de terrorismo é por outros interpretado como um ato de resistência”. E é da
veiculação clara desse terreno de eminente transmutação e conflito – não apenas
no campo das artes ou das ideias e quase sempre no das emoções – que Eicher,
enquanto produtor, jamais abdicou.
Daí
ser possível identificar nos elementos agora coligidos uma distinta ordem que se
pode formular da seguinte maneira: a ECM foi amiúde mandatária de uma inconfessada
poética do partidarismo. E foi a inabalável crença nos seus artistas que lhe
permitiu, não obstante ter granjeado um invejável sucesso junto do público,
permanecer imune ao proselitismo e dar início a uma extensa área de trabalho, com
inevitáveis consequências epistemológicas, que, ocasionalmente, parece apenas ilustrar
a empirista máxima de Aristóteles: nada há no intelecto que não tenha passado
antes pelos sentidos. Trocando impressões com Manfred Eicher no dia a seguir à
inauguração da exposição confirma-se essa confiança nos músicos com que decide
colaborar e a primazia da intuição; mas pressente-se também um espírito
inquieto, mais interessado na próxima ida a estúdio do que na reavaliação do
seu património.
Trata-se
aqui de linhas de força reforçadas pela inteligente curadoria de Okwui Enwezor
e Markus Müller. As sete salas desta “ECM – A Cultural Archaeology” funcionam tanto
como labirintos quanto como casulos: música, cinema documental, fotografia,
instalação multimédia, projeção vídeo, concerto, bobine, programa televisivo, poster, pauta, pintura, folha de palco
ou capa de LP combinam-se gerando simultaneamente efeitos cumulativos e excecionais.
Ouvem-se álbuns completos em auscultadores (a começar por “Afternoon of a
Georgia Faun”, de Marion Brown, porventura o mais belo disco na editora, ou
pelo volume um do trio Codona até aos igualmente inesquecíveis “Open, To Love”
de Paul Bley ou “Voci” de Luciano Berio) mas também seleções transversais elaboradas
por Eicher em diversos recantos; escuta-se em hipnotizante imersão o áudio
integral de “Nouvelle Vague”, de Jean-Luc Godard (sala 3.1); assiste-se ao acutilante
capítulo sobre Meredith Monk em “Four American Composers”, de Peter Greenaway
(sala 3.2); vêem-se fotos de Dieter Rehm (sala 2) e quadros de Barbara Wojirsch
(sala 6). No fundo, num extático assalto sensorial em que tudo ressoa, concentra-se
metaforicamente alguns dos princípios da editora: prática globalizante e
transcultural aliada a expressões de individualidade criativa; diluição de
hierarquias artísticas com rigor e honestidade intelectual; interdisciplinaridade
traçada num quadro geral de sobriedade e subtileza; adaptabilidade a gestos formalmente
fraturantes; questionamento do cânone e relativização de expectativas
tradicionais; incidência histórica e sublimação temporal.
Para
tudo isto logo chamam a atenção Marion Brown e Wadada Leo Smith em “See The
Music” (sala 1; filme de 1971 de Theodor Kotulla registado em Munique durante
os ensaios e o espetáculo de um grupo no qual Eicher tocava contrabaixo)
falando, respetivamente, acerca de uma “música formada já no espírito dos
instrumentistas antes destes se conhecerem” ou de uma “organização de sons feita
como na natureza”. A inclusão destas seminais figuras do pós-free jazz na entrada da exposição
acarreta outra consequência de alcance considerável, pois obriga a pensar num tema
secundarizado na biografia da ECM, dada a longa relação da editora com músicos
europeus e a crescente documentação de música clássica por si empreendida no âmbito
da New Series, que é o da importância formativa impressa no seu catálogo por
dissidentes da cultura de massas norte-americana na ressaca do movimento dos direitos
civis. Esta visão, ancorada no impacto programático do título do primeiro LP lançado
na chancela (“Free at Last”, de 1969, pelo trio de Mal Waldron), informa parte
substantiva dos mais especulativos materiais agora reunidos, como “Hors-champs”
(sala 5; vídeo de 1992 de Stan Douglas montado a partir de uma atuação do
quarteto de George Lewis, Douglas Ewart, Kent Carter e Oliver Johnson), que
sugere uma meditação sobre identidade e alteridade, nacionalidade e especificidade
racial, EUA vs. Europa, etc., ao incluir feéricas interpretações do ‘Spirits
Rejoice’ de Albert Ayler e dos hinos nacionais francês e norte-americano, ou, obliquamente,
como “Ellis Island” (sala 4; filme de 1981 de Meredith Monk), outra
investigação baseada em aspiração, migração, rejeição e tensão étnico-ideológica.
Ou
seja, nota-se um esforço consciente em refutar aquela perspetiva cristalizada durante
anos em insulares idealizações que, por efabulada demagogia e desastrosa
pedagogia, situavam a editora à margem de transformações políticas, sociais,
artísticas e até comerciais (uma tendência, quanto muito, compreensível à luz da
crónica exaustiva de Keith Jarrett, John Abercrombie, Ralph Towner, Jan
Garbarek, Stephan Micus, Terje Rypdal, Egberto Gismonti, John Surman ou do
grupo de Pat Metheny a par do vínculo estabelecido com o repertório de Bach, Beethoven,
Silvestrov ou Kancheli).
Porque,
irreversivelmente, nesta mostra, a ECM encontra-se mergulhada no coração da
História: na maré de editoras suas contemporâneas, também batizadas com
acrónimos, nas quais, numa conversa em mesa-redonda reproduzida no catálogo,
Eicher reconhece inspiração e qualidades (ESP, FMP, MPS, ICP); na tradição de
editoras inauguradas por músicos (Debut, Saturn, Incus, WATT), embora neste
caso para gravar obras de outros músicos; ou através da publicação de discos
fortemente politizados (dos do Art Ensemble of Chicago – principalmente presentes
na sala 2 em emblemáticas fotografias de Roberto Masotti – aos de Charlie Haden
e Heiner Goebbels). Mas ainda na insistência em acompanhar a expansão de
linguagens originária em figuras vindas do jazz,
como Lester Bowie, Hal Russell, Joe Maneri ou Evan Parker; no presciente arranque
da New Series (cujo primeiro lançamento, “Tabula Rasa”, de Arvo Pärt, encerra
no título o mesmo tipo de ambição emancipatória presumido no de Mal Waldron); na
atenção à música de todo o mundo numa altura em que ainda não se falava de
‘música do mundo’ (Shankar, Brahem, Gismonti, Saluzzi); e na definição de um espaço
idiossincrático para criadores nómadas, e para lá de qualquer categoria, como
Don Cherry, Jon Hassell ou Bengt Berger, que aí depositaram fragmentos da sua livre
e exaltante viagem.
Neste
particular, cruza-se a editora com dois vetores centrais à produção da segunda
metade do século XX: iconoclastia e transcendência. Uma tangente vital para
decifrar a ação de Codona, o trio de Collin Walcott, Don Cherry e Naná
Vasconcelos, protagonistas de “New Light”, vídeo ensaístico encomendado para a
exposição ao Otolith Group (o coletivo fundado por Anjalika Sagar e Kodwo
Eshun), que realiza na sala 3.3 uma sensível exumação do legado do grupo a
partir dos seus três álbuns e de imagens de arquivo. Com Eshun, em conversa, problematizávamos
uma afirmação de Cherry (a de que “um músico é apenas um filtro para que outra
entidade se possa evidenciar”) com as experiências metaficcionais de Gertrude
Stein no livro “The Making of Americans”, citado precisamente na contracapa do
primeiro álbum de Codona, e com uma preocupação comum em trazer para o presente
as periferias do mundo. Sem o saber, estávamos, talvez, a resumir exemplarmente
a própria ECM.
[a
exposição, patente até dia 10 de Fevereiro de 2013, é acompanhada por um ciclo
de concertos envolvendo nomes como Brahem, Rava, Monk, Schiff ou Garbarek e
pela exibição de filmes de Bergman, Godard, Angelopoulos ou Tarkovsky; a
programação pode ser consultada em www.hausderkunst.de]
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