22 de fevereiro de 2020

Ravel, Enescu, Ysaÿe, Prokofiev: Strangers in Paradise (Warner, 2019)

Aí em cima, na ficha, não dá para perceber. E, na capa, só à lupa. Mas, como se, por acaso, alguém – ou uma gata, que é geralmente o que me acontece – tivesse carregado no Caps Lock no momento exato da sua composição, dá-se no título deste CD por um assalto capitular que, na verdade, é em tudo programático: “Strangers in PARadISe”, lê-se. Isto é, contrariamente às expectativas, não estamos em Mercúrio, como no conto de Asimov, mas, sim, em Paris – seja como for, ouvindo o violino de Tishchenko, não há como não sacar o livro da prateleira, ir diretamente às últimas linhas e escrever: “Deu um pulo e ergueu-se lentamente no ar com uma liberdade que nunca sentira, e novamente deu um pulo, ao pousar, e correu, e saltou, e de novo correu, com um corpo que respondia perfeitamente a este mundo glorioso, a este paraíso em que finalmente se achava. Um estranho, tão longe e tão perdido, finalmente no paraíso.”

Frase que descreve o que se dá com o antropomorfizado Stradivarius da ucraniana no contacto com a “Sonata Nº 3” de Ysaÿe, com a “Sonata Nº 2” de Ravel, com a “Sonata Nº 3” de Enescu e com a “Sonata Nº 1” de Prokofiev. Pensando no instrumento, olhando bem para o que tinham acabado de compor, qualquer um deles poderia ter chegado à mesma conclusão que os protagonistas do conto, reagindo ao que viam: “Tem um mundo para o qual o seu novo corpo está perfeitamente adequado, em troca deste mundo ao qual o seu velho corpo não se ajustava de modo algum”. Os primeiros três em plenos années folles, com o jazz a desfibrilhar tudo em que tocava, incluindo o folclore, como no caso do romeno (e Tishchenko evoca-os com uma leveza rara, mas nunca menos que elétrica); o russo no pós-Guerra, longe da glória obtida na capital francesa, com o bafo de Estaline a colar-se-lhe à nuca e consciente de que tinha de importar para a sua obra algo que Asimov resumiu assim: “Temos de estudar padrões genéticos em ação, se nos quisermos entender, e são os padrões anormais e monstruosos que mais informações nos dão”. Aqui, até arrepia.

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