20 de agosto de 2016

“Ramon Llull: Temps de Conquestes, de Diàleg i Desconhort” (Alia Vox, 2016)





Sílvia Bel, Jordi Boixaderas, Waed Bouhassoun, Lior Elmaleh, Moslem Rahal, Hakan Güngör, Yurdal Tokcan, Haïg Sarikouyoumdjian, Dimitri Psonis, La Capella Reial de Catalunya, Hespèrion XXI, Jordi Savall (d)

No prólogo do “Livro de Maravilhas”, de Ramon Llull (1232-1316), porventura um dos seus escritos mais novelescos, Félix, o protagonista, prevenido já quanto ao estado das coisas, recebe do pai a incumbência de partir em peregrinação pelo mundo sem deixar de se deslumbrar e espantar com o que à sua frente aparecer: “E será a falta de caridade e devoção do nosso século que primeiro te deixará pasmo”, avisa. Setecentos anos depois, também ele marcado pelo signo da itinerância, é a vez de Jordi Savall fazer eco destas palavras: “Visitei a ‘selva’ de Calais acompanhado por músicos vindos da Síria, da Turquia, de Israel ou da Grécia”, contou à revista francesa “L’Express”. “Queria entrar em contacto com os refugiados, mas igualmente com os habitantes da cidade. Visitei os acampamentos e ouvi coisas difíceis e pungentes. Diziam-me que não tinham intenção alguma de ir para ali viver mas que não esperavam um tratamento tão pouco humanitário. São homens, mulheres e crianças em profunda aflição.”

Nessa perspetiva, o que Albert Soler, do Centro de Documentação Ramon Llull, da Universidade de Barcelona, escreve sobre um é válido para o outro: “Apesar da viagem, para Llull, se provar sobretudo um instrumento necessário à prossecução de projetos missionários, não deixa ao mesmo tempo de refletir um espírito de abertura e uma vontade indómita de comunicar. As suas propostas intelectuais e espirituais levam o leitor a abandonar as suas próprias zonas de conforto, a formular e dar resposta a questões por si mesmo ou a disputar o que lhe é dado de antemão a conhecer.” Também no caso de Savall se fala amiúde em missionarismo. E ele costuma repetir mais ou menos que “a arte é uma das dimensões mais nobres da vida na terra, mas que não é suficiente em si mesma. O estetismo pode levar à desumanização. Se a música não for mais que uma distração ou, inclusivamente, um ideal, desligado de aspetos espirituais, das dores dos outros e do quotidiano, então, sim, poderá conduzir a totalitarismos.”

Daí jamais abdicarem de enunciar tudo aquilo a que se propõem, estas edições de Savall. Multilingue e multifacetada, “Ramon Llull” abrange dois CD e um livro com cerca de 300 páginas, profusamente ilustrado, onde se incluem ensaios e notas biográficas e cronológicas acerca da vida desse pensador, poeta, místico e matemático do medievo mediterrânico. A música, gravada a 28 de novembro do ano passado, no Salão do Tinell, em Barcelona, propõe a recriação da banda sonora que acompanhou a vida de Llull, compreendendo música sacra (cristã, muçulmana e judaica), bem como memórias da Maiorca islâmica (com taqsim, danças mouriscas ou moachahas, interpretadas por instrumentistas sírios, marroquinos, turcos e gregos que, diz Savall, “são verdadeiros conservadores e ao mesmo tempo (re)criadores de um património intangível antiquíssimo”) e das cortes aragonesas de Jaime I, Pedro III, Afonso III e Jaime II, por intermédio de obras de trovadores e jograis como Raimon de Miraval e Bernat de Ventadorn.

Em notas de apresentação, Savall torna claro o complexo de emoções que de si se apoderou: “Ramon Llull exemplifica o homem que vive intensamente o seu tempo e que permanece fiel aos seus princípios e ideias até às últimas consequências, convencido de que a arte, o conhecimento, a fé e o diálogo são instrumentos para melhorar o mundo. Pensador, poeta, filósofo, teólogo, orador, evangelizador, tudo o que fez, e tudo aquilo em que acreditava, se revela um inesgotável testemunho de ensinamentos que permanecem em vigor e, mais do que nunca, necessários. É por isso indispensável recordar e alimentar a sua mensagem, estudando e difundindo a sua obra. Desse modo, o seu espírito continuará a conduzir-nos à luz e à sabedoria, imprescindíveis num mundo sem rumo em que, a cada dia que passa, o fanatismo e a estupidez nos afastam inexoravelmente dos ideais pelos quais se regeu mestre Ramon: os de uma civilização que fundamenta o seu humanismo no ensino e no diálogo, na espiritualidade e na beleza.”

Impõe-se aqui uma ressalva. É que, como sugeriu Luísa Costa Gomes no romanceado “Vida de Ramon” (publicado em 1991 e alvo de uma segunda edição revista este ano), “alguns comentadores torcem Ramon para a imagem de um beato ecuménico, interessado sobremaneira no diálogo das civilizações, na procura da raiz única da religião universal, e passam ligeiramente ao lado do seu dogmatismo e dos projetos de Cruzada. É verdade que, no princípio, enquanto os fracassos da Arte [‘Ars Magna’] não eram visíveis e amargos, se inclinou para as liberalidades, deixando em aberto discussões, persuadido da evidência que ele mesmo transportava, a saber, de que as luzes da razão e da demonstração fariam derrubar os limites dos credos particulares não-católicos. Mas a velhice encontrou-o cada vez mais aferrado à ideia autoritária que vinha da mistificação inventada pelo próprio de que os povos muçulmanos eram contrariados pela opressão dos déspotas e que, varridos estes, aqueles aceitariam a pregação cristã.”

Mas Savall, cuja curiosidade se diria tão incansável e transbordante quanto a de Llull, contorna o embuste da metafísica. Aliás, imagina-se o catalão a pegar na “Vida Coetânea” do maiorquino (o relato biográfico que Llull deixou aos cartuxos de Vauvert), ler o seu início (“Sendo Ramon senescal do Rei de Mallorques, ainda jovem, e muito dado a compor cantilenas ou canções, estava uma noite sentado junto à cama, disposto a compor e a escrever uma cantiga sobre certa dama a quem amava. Começava a escrevê-la quando, olhando à direita, viu Nosso Senhor Jesus Cristo pregado na cruz. Sentiu medo e, deixando o que tinha entre mãos, meteu-se na cama. Levantando-se no dia seguinte, voltou às vaidades de sempre; e passados quase oito dias, no mesmo lugar e à mesma hora, de novo se dispôs a escrever a dita canção; e de novo lhe apareceu o Senhor na Cruz”, etc.) e a pensar para si mesmo: ainda que o ponto não seja esse, que pena nada se saber dessa canção que Llull tentava a todo o custo completar.

Porque Savall crê numa frase de Elias Canetti que vem repetindo há uns bons 15 anos: “A música é a história viva da humanidade, da qual, de outra maneira, possuímos apenas as partes mortas.” E, já agora, deve comungar dessoutra que abdica de citar: “Quanto mais densamente se povoa o mundo e quanto mais mecanizada se torna a forma de viver, mais indispensável se deve tornar a música.” Pois, tal como esse descendente de judeus sefarditas evacuados à força de Espanha em 1492, também Savall vê a música como um “potente e intacto reservatório de liberdade”. Disse à “Folha de S. Paulo”, em 2001, que “a música não pode ser uma ciência, nem uma arqueologia. É sempre um ato criativo, e o ato criativo não pode ser uma imitação. Não pretendemos interpretar estas músicas como foram interpretadas na sua época. O que pretendemos é a fidelidade aos textos, ao espírito e caráter. A vigência de uma música depende da capacidade que tem de emocionar-nos hoje como um dia emocionou os seus contemporâneos.”

Nessa medida, esta edição, cujo subtítulo abraça o paradoxo (“Tempos de conquistas, de diálogo e de desconsolo”), é exemplar, pois a pretexto do périplo de Llull por Santiago de Compostela, Montpellier, Roma, Paris, Túnis, Chipre, Génova, Bugia e Sicília, os trechos de “Livro de Contemplação”, de “Vida Coetânea”, do belíssimo “Livro do Amigo e do Amado” ou de “O Desconsolo” (recitados em catalão por Sílvia Bel e Jordi Boixaderas) surgem investidos de um sentimento que por si sós não poderiam possuir, e que deriva de páginas sublimes como são “Aisse cum es genser Pascors”, de Miraval, “Maqam Hijaz”, de Ibn Zaydún, “Santa Maria, strela do dia”, de Afonso X, o Sábio, “Ya Mariam el bekr” (um hino mariano árabe, cantado de forma deslumbrante por Waed Bouhassoun), “Billadi askara min abdi al-lama” (uma dança mourisca), “Deus est ainsi comme li pelicans”, de Teobaldo I de Navarra, o Trovador, ou “Qamti be – Ishon Layla” (um lamento judaico na voz do insuperável, neste contexto, Lior Elmaleh).

Llull morreu em 1316, vítima da intolerância. Deixou escrito que os outros são “iguais a nós e à nossa natureza”. Nunca imaginou que ao fim de sete séculos ainda se pusessem em causa as suas palavras.

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