3 de janeiro de 2015

Entrevista a Ondina Pires, autora de "Biografia Autorizada de Victor Gomes: Juntos Outra Vez"



Ondina Pires é perentória: “Foi um susto! Era inevitável entrar por aqui adentro mas ninguém estava preparado para aquilo. Talvez por isso se tenha mantido um corpo externo à nossa própria realidade.” Fala, claro, da chegada do rock’n’roll a Portugal, ali entre finais de 50 e inícios de 60, e logo dá uma achega quanto à sua progressiva assimilação pelo bucolismo mais ufano e pelo urbanismo mais pueril. Afinal, tudo se passava sob as vistas horrorizadas da brigada dos bons costumes e impunha-se contrariar os ferinos instintos de um estilo que apelava permanentemente ao escândalo. “De repente”, prossegue, “o que tínhamos por cá era um rock assexuado e inofensivo, e isso chocou o Victor. Aliás, se pudéssemos concentrar a ação inicial do Victor num manifesto seria precisamente esse, o de cantar o que ele chama de verdadeiro rock, o rock’n’roll à americana, em inglês, rebelde e selvagem, proibido e fascinante, como quem mostra à metrópole que isto não se trata de mais uma cançoneta ou de um fadinho qualquer.”

Vindo de Luanda, após adolescência e infância passadas num Moçambique prenhe de eventos, Victor Gomes aterra em Lisboa em abril de 1963. Virá a deixar a cidade, e o país, em dezembro de 1967, para só regressar em definitivo no início da década de 90, e, bem sabe quem conhece o meio, à sua passagem deixou a terra queimada, um rastro de pragas. Além de um interessante acervo fotográfico, Ondina reuniu escritos diversos com origem em publicações como “O Século”, “Diário Popular”, “Crónica Feminina” ou “Plateia” e o que sobressai é uma sequência de “esgares e piruetas”, um vórtice de “doença”, “frenesi”, “loucura” e “fúria”, uma contínua caricatura que o cronista Sebastião Leiria, no “Jornal do Algarve”, em agosto de 1964, assim sumariou: “Depois de Victor berrar os sete farrapos em várias posições, berra de cócoras muito irritado, não se sabe porquê. Os demais Gatos também se põem de cócoras. Depois arroja-se ao chão, os Gatos também. Tudo estendido a coçar a barriga. Então Victor põe o microfone de pés para o ar e reboleia-se no sobrado, lembrando os besouros quando de barriga para cima se querem voltar.”

A cada concerto, conjugando o desconhecido, Victor Gomes diz às audiências nacionais que a experiência do rock lhes é tão estranha que nem a língua em que falam a pode representar. “Essa questão é importantíssima e ninguém a mencionou”, acrescenta Ondina. “O Victor, de Lourenço Marques, veio com o inglês debaixo da língua e chegou a um país de agudíssimos atrasos. E, conhecendo o repertório que ele dominava [Elvis Presley, Little Richard, Carl Perkins, Jerry Lee Lewis, Gene Vincent, etc], é óbvio que a censura também não o entendia lá muito bem.” Quando Vasco Morgado se lembrou de colocar Victor Gomes e os Gatos Negros a tocar num palco improvisado em pleno Saldanha, a sua arguta réplica a uns agentes da PIDE que lhe questionaram as intenções ilustra este paradoxo na perfeição: “Os senhores não se preocupem: isto é apenas rock”. De súbito, os multifários e inefáveis expoentes comportamentais reclamados pela música jovem das democracias modernas, que Victor imitava, ganhavam exposição no centro de uma capital envelhecida e subdesenvolvida e eram augúrio do que poucos se permitiam imaginar: um novo posicionamento de Portugal perante o mundo.

No entanto, contrapõe Ondina: “Se dissermos ao Victor que a sua ação no período é eminentemente política, ele não o vai aceitar.” Provavelmente por recusar-se a admitir a instrumentalização que aí se implica. E, depois, porque é evidente que não gerou descendência. Que ninguém ousou aproveitar-se da originalidade que preconizou. “Falando com o Victor”, insiste, “nota-se o agasto causado pela tomada de consciência de que lhe era impossível ter feito mais. Que tudo em seu redor permaneceu muito bem-comportado e politicamente correto. Quando fez parte de júris dos Concursos de Ié-Ié [a partir de 1965] começou a aborrecer-se. Achava que não tinham aprendido com o seu exemplo e sentia falta de figuras ferozes em palco. Até que dá o rock por morto e enterrado e se vira para a música ligeira. Mas com aquela energia erótica e insubmissa, a partir microfones, a gritar, a empurrar os colegas da banda, a saltar para o público e a arrastar-se pelo chão, fico com a impressão que havia mais gente na altura a desejar ter sido como o Victor mas que não teve coragem, a quem faltou garra e a necessidade física de extravasar tudo aquilo daquela maneira.”

É um retrato que fica por fazer. Este “Juntos Outra Vez” – título inspirado na única gravação que Victor realizou nos anos 60 – termina com a seguinte nota: “Muitos [dos] que conviveram ou ainda convivem com o Victor Gomes foram contactados. Grande parte deles não respondeu ou deu evasivas.” Ondina revalida o desabafo: “Há um embaraço crónico em relação ao passado neste país. Tudo indica que se preferem mascarar os factos relativos às décadas de 50, 60 e 70. Há uma enorme falta de confiança e pouquíssima autoestima. Este passar com uma esponja por cima dos assuntos também é um sinal de carência de amor-próprio.” Põe mais deliberadamente o dedo na ferida: “Não é nada simples dedicar uma biografia a uma pessoa viva e ela própria muito complexa. As fontes históricas são raras e ocasionalmente anedóticas. Procuro confirmar testemunhos e encontro impaciência e indignação. A maioria das pessoas do tempo do Victor – músicos, bailarinas, promotores, jornalistas, fotógrafos – preferiu não falar. Parece que toda a gente tem medo de toda a gente, que toda a gente tem vergonha de toda a gente.”

Se fosse um filme, e Ondina recorre com frequência a técnicas narrativas associadas à escrita para cinema, “Juntos Outra Vez” teria a metade passada em Portugal a preto e branco e, apesar de tudo, a metade passada em África a cores. Em 1968, quando Victor viaja por Moçambique a atuar para as tropas, a convite do Movimento Nacional Feminino, dá uma entrevista ao “Notícias da Beira” em que diz que o “ambiente artístico metropolitano é terrivelmente artificial”, que está rodeado de “mesquinhez” e “cinismo”, que os artistas se tentam “queimar uns aos outros”, entre “invejas e intrigas”. Ondina confirma que estes momentos de disforia se repetem no percurso de Victor: “Seria uma forma de viver em paz no presente, esse acertar de contas com o passado. Mas há muitos assuntos que ele não quis abordar. Olha-se para o que ele diz e pensa-se imediatamente: foi mesmo assim?” Em privado, discuta-se o assunto com contemporâneos seus que não vão faltar diferentes versões para os mesmos acontecimentos. Mas, sob certa perspetiva, antes de se dirigir ao cidadão, o que o rock exemplarmente sintetiza é essa submissão aos variados e contrastantes pulsares do indivíduo.

Quantas vidas teve Victor? Houve a do menino do Alto do Pina que aos seis anos é subitamente levado pela família para Lourenço Marques para logo se ver deixado aos cuidados dos salesianos no Instituto Mouzinho de Albuquerque; a do miúdo que, à caça e à pesca, explorava as pastagens e os lagos na fronteira com a Suazilândia e que, nunca tendo recebido visitas dos pais, pedia todos os anos pelo Natal uma pressão de ar; a do rapazote que, no dia a seguir a ter feito 15 anos, fugiu do instituto para, meses depois, andar pelos prostíbulos da rua Araújo com “poupa cheia de brilhantina, jeans, blusão de ganga de gola levantada e atitude desafiadora”; a de aprendiz de soldador que queria cantar; a de futebolista no Sporting Clube de Lourenço Marques, hoquista no Sindicato ou pugilista no Desportivo de Malhangalene; a de vedeta instantânea, vencedor de “A Hora do Caloiro” no Rádio Clube de Moçambique; a de prematuro pai de família tornado caçador; a de regressado ao mundo do espetáculo e imigrado em Angola com a coroa de ‘Rei do Rock’; a de retornado a Lisboa com nome feito no teatro de revista, no concurso do ‘Rei do Twist’, no cinema, no circuito do Maxime, do Fontória, do Ritz, de uma cidade que crescia em volúpia e violência a cada madrugada; a daquele que se fixou na Rodésia deixando uma mulher em cada porto; a de criador de gado que teve uma fazenda em Balla Balla e que mais tarde foi mercenário; a de soldador em Inglaterra e França; a de carismático crooner no T-Club, no Espelho d’Água, em Belém, entregue à gestão das suas memórias e a uma plateia que sabia invejar a sua juventude. Certamente tantas mais.

O Victor nunca esteve completamente consciente do seu valor simbólico. Não tem noção de que significou a mudança”, deduz Ondina. A imagem que fica desta sua biografia é de um homem incapaz de esconder a sua natureza e de assumir a sua vulnerabilidade. A de alguém que não se quis reduzir a nenhuma ideologia que não aquela plasmada na sua provocante incoerência. Que encontrou no rock “uma família adotiva”, concorda a autora, “uma maneira de conquistar algum exibicionismo social e de fazer frente ao que achava injusto”, num género espúrio, de natureza híbrida, capaz de abalar hierarquias e de pôr em andamento processos de emancipação e participação face aos quais permaneceu muitas vezes ignaro. “Ele é muito contraditório politicamente, revolucionário numas coisas, conservador noutras”, resume Ondina. “Talvez se possa dizer, até, que viveu o rock mais do que o cantou. Ainda que profundamente ambíguo é um elogio que se lhe pode fazer. Neste país em que a história vai com o vento, em que a tendência é a da regressão cultural e que o desinteresse e o desafeto parecem epidémicos, quis salvaguardar as estórias do Victor, mesmo se ele não gosta de perder tempo a pensar nas coisas, se a ideia que deixa é a de alguém forte mas teimoso, a caminhar pelo mundo como uma imparável força da natureza, sempre a avançar, só coração.” Um coração independente.

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