Ao que
tudo indica, não podiam ter sido mais diferentes um do outro. Por alguma razão
nunca tocaram juntos. Mingus, truculento e devasso, críptico e sentencioso, arrastando
em palco o seu contrabaixo como se fosse um canhão, um tanque prestes a
inflamar-se. Coltrane, absorto e intemerato, tranquilo e hospitaleiro, harmoniosamente
empilhando blocos de som ao saxofone como um dedicado e astuto encantador de
serpentes, diplomata em matéria transcendental. E, no entanto, algo os unia. A
começar pela insubmissão, proteica e combustível, fruto de uma espécie de
exílio da mente num país que, quanto muito, camuflava a segregação. Mas se
Mingus escarnecia legisladores e governantes, fazia de misantropo e desintegrava
arranjos como quem nas ruas infiltrava agentes, já Coltrane não via senhores
nem súbditos, preocupando-se em atingir a consciência de ambos, compondo como quem
dá corpo a um ministério de tolerância – tomar-se-iam por Malcolm X e Martin
Luther King. Já noutro particular se assemelhavam mais: promoviam uma vital expansão
da arquitetura musical do seu tempo com a mesma veemência com que lhe veneravam
aspetos fundadores. Isto é, foram simultaneamente radicais e tradicionais,
ambiciosos e humildes. Acreditavam na espontaneidade enquanto memória coletiva,
e na responsabilidade em servi-la. Por isso ouvi-los era embarcar numa viagem
por um arcano sistema cosmogónico, oralmente transmitido em congregações
afro-americanas, quilombos, senzalas, negreiros. Além do mais, produziram álbuns
de influência circunstancial que adquiriram, combinada e cronologicamente
entendidos, importância histórica, testemunho das faculdades expressivas e
autonómicas do jazz. E foram, entre 1959 e 1961, colegas de editora, dando mostras
de ter finalmente aportado no seu destino quando estavam apenas em trânsito
para outra paragem.
“Passions
of a Man” reúne as gravações de Charles Mingus para a Atlantic entre 1956 e
1961, documentando o primeiro dos dois vínculos que firmaria com a etiqueta. Relembre-se
que na altura registou os momentosos “East Coasting” na Bethlehem, “Ah Um” na
Columbia ou “Tijuana Moods” na RCA, pelo que qualquer retrato unilateral do
período ficará incompleto. Seja como for trata-se aqui de um átimo fulcral, em
que amadureceu conceitos e patenteou uma linguagem inconfundível, expondo perversas
vulgaridades e engenhosas construções cuja fantasia era só superada por uma
turbulenta e palimpséstica teatralidade, e pela sombra da dúvida. Tem como paradigma
o evolucionista “Pithecanthropus Erectus” (1956), mas também “The Clown” (1957) é
parabólico, maculado pelo rancor e tingido pelo absurdo. Pontuam-se por um
inusitado sentido rítmico – prosseguindo ora com destemperada urgência ora com
predatória morosidade – que se alastrou ao vernacular “Blues & Roots”
(1959). Soprado com proselítica energia, “Oh Yeah” (1961) aprofunda essa
investigação da primeva canção norte-americana de modo burlesco. A antologia
inclui ainda “Tonight at Noon”, coletânea de inéditos, “Mingus at Antibes”, concerto
de 1960 editado em 1979, e, num sexto CD, uma conversa entre Mingus e Nesuhi
Ertegun. Notáveis no elenco estão Mal Waldron, Jackie McLean, Jimmy Knepper,
Dannie Richmond, Roland Kirk, Booker Ervin e Pepper Adams. Depois de “The Complete Columbia & RCA Albums Collection” e “The Jazz Workshop Concerts”, baús organizados em 2012, repõe-se agora parte indispensável
da herança de um colossal compositor.
“The Heavyweight Champion”, integral das idas a
estúdio de John Coltrane sob os auspícios
da Atlantic, evoca um ciclo criativo mais curto mas de exposição mais longa. Por exemplo, os seus derradeiros
constituintes, “The
Coltrane Legacy” e “Alternate Takes”, despontaram nos anos 70. Aliás, uma
parcela assinalável destes discos – flagrantes os casos de “Coltrane Plays the
Blues” e “Coltrane's Sound”, formados a partir de fitas excedentárias em
arquivo, mais especulativos os de “Bags & Trane” e “The Avant-Garde” – viu
a luz do dia em virtude do sucesso que o seu autor obteve ao serviço de outrem,
publicados depois de a Impulse ter colocado no mercado “Africa/Brass” ou “Live
at the Village Vanguard”. Não obstante o sinecurismo, esta é uma exaltante temporada de descobertas e experiências, indiferente a modas,
de uma consistência novelística e repertório continuamente ensaiado, arquetipicamente
manifestada em “Giant Steps” (1959). Mais congeniais, “Coltrane Jazz” (1959-60)
confirma os poderes transfiguradores do solista e “My Favorite Things”
(1960) está já na terra prometida, gracioso e leve,
enfático e denso, com uma coesão quase acidental com Elvin Jones e McCoy Tyner.
“Olé” (1961) fechou contrato mas é precursor do seguinte estágio de evolução,
exótico e extático, de propriedades redentoras. Com “FearlessLeader”, “Interplay” e “Side Steps” coligindo as bobines da Prestige, e com a
série “The Impulse! Albums” nas lojas, eis o que liga uma fase à outra, neste caminho
de fé, inexcedível em carisma e benevolência.
Sem comentários:
Enviar um comentário