5 de maio de 2018

Rachmaninov: 24 Preludes (Harmonia Mundi, 2018)


Se acompanhasse um filme mudo ver-se-ia certamente uma cidade a ser devorada pelas chamas, com gente desnorteada pelas ruas a guiar uma muda de roupa com uma mão e uma criança desgrenhada com a outra enquanto tenta a todo o custo evitar as guinadas dos carros dos bombeiros; a que se seguiria um plano picado da turba revoltosa pelo paço, blindada por faixas de protesto em barricadas e erguendo baionetas e bandeiras com a foice e o martelo à medida que, em contrapicado, de tanto bater, um sino na torre de uma igreja fica com a boca parecida a “O Grito”, de Munch; depois, incrédula, sem conseguir dar um passo que seja para lá da soleira da porta, uma velhota tira por fim a mão do rosto e começa a benzer-se ao reparar nos corpos que ficam estendidos no chão da praça quando cai a noite e dispersa a multidão. É um conjunto de cenas perfeitamente capaz de ter passado pela cabeça de Rachmaninoff quando, em 1917, como reação à Revolução de Outubro, compôs “Prelúdio em Ré menor” (que só viria a ganhar edição póstuma, em 1973), porventura a mais negra e pessimista das suas peças curtas para piano, com uma linha sonora descendente e trágica a evocar uma lenta marcha de condenados – ou algo pior ainda. Como de costume, não está incluído nesta espécie de integral: como Ashkenazy, Hayroudinoff ou Osborne antes de si, mas melhor do que todos eles, Lugansky fica-se pelo “Prelúdio em Dó sustenido menor”, Op.3/2 (1892), pelos “Dez Prelúdios”, Op. 23 (1903), e pelos “Treze Prelúdios”, Op. 32 (1910). Mas o arco narrativo que o pianista sugere é de tal modo bem conseguido que, a espaços, ao longo destes 82 minutos, como uma fatalidade, se pressente a sombra desse último prelúdio que Rachmaninoff viria a escrever antes de partir em definitivo para o exílio e de se tornar, ele mesmo, uma sombra de si próprio. Pois a verdade é que não há por aqui um momento que não dê mostras de dever por inteiro ao destino. Lugansky havia já gravado o Op. 3/2 e o Op. 23 de forma, até, mais virtuosística, mas a maneira em que equilibra, agora, claridade e ambiguidade e subtileza e grandeza é insuperável.

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