Numa
invulgar combinação diegética, Chavela declama poemas e fragmentos da obra
literária de Federico García Lorca – edificada entre meados dos anos 20 e 30 do
século passado – enquanto os seus guitarristas, Juan Carlos Allende e Miguel
Peña, a acompanham discorrendo sobre um cancioneiro que traça o essencial de
uma biografia artística firmada nos anos 50 e 60. O anacronismo é ilusório,
embora raras vezes coincidam temáticas: por exemplo, o verso “toda mi vida de
sus labios suspendida”, extraído à operática farsa “Lola la comedianta”, ganha
eco no desamor forçado de ‘Nosotros’, de Pedro Junco; da mesma maneira, estabelece-se
um inesperado paralelismo entre o bolero ‘Luz de luna’, de Álvaro Carrillo, e a
leitura de ‘Canción de Jinete’, história de sangue e contrabando banhada por
uma lua negra; e é também na noite que se desencontram os amantes de ‘Soledad’
e os de ‘Gacela del amor desesperado’, coligido em 1934 no poemário “Diván del
Tamarit”. Mas na maior parte dos casos, talvez por estarem juntos em
pensamento, a embargada entoação da voz parece vir de um tempo contemporâneo ao
da escrita. Nessa perspetiva, a evocação das inolvidáveis ‘Noche de ronda’, ‘Si
no te vas’, ‘Se me hizo fácil’, ‘Macorina’, ‘La llorona’ ou ‘Cruz de olvido’
serve aqui um propósito confessional, em que, por anteposição, se credencia ao
escritor uma dimensão fundadora na identidade da cantora. O que implica
pensar-se em sexualidade (pagaram ambos por assumir a homossexualidade num meio
discriminatório) e morte (o assassinato do granadino e a ‘morte em vida’ de
Chavelas, de que nada se soube durante 15 miseráveis anos). É uma desapiedada
catarse que deslumbra ao mergulhar no abismo mas que jamais concede ao martírio
e, talvez por isso, uma derradeira afirmação de liberdade, rebeldia e
romantismo.
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