27 de dezembro de 2014

“Black Fire! New Spirits!” (Soul Jazz, 2014)



“Black Fire! New Spirits! Images of a Revolution: Radical Jazz in the USA 1960-75” 
“Black Fire! New Spirits! Radical and Revolutionary Jazz in the USA 1957-82”


Foi há 50 anos. E, em retrospetiva, na década de 90, num artigo para a JazzTimes, o crítico Bill Shoemaker caracterizou-a como “a mais seminal série de concertos de jazz jamais organizada”. Durou poucas noites, teve como palco o modesto Cellar Café, em Nova Iorque, e adotou a designação de “Revolução de Outubro no Jazz”, confortável com o bolchevismo e a hipérbole. Para muitos, entre dezenas de intervenientes, foi a primeira oportunidade para assistir a atuações de Archie Shepp, Andrew Hill, Sun Ra, Cecil Taylor ou Ornette Coleman com plena consciência de que estavam em marcha eventos capaz de radicalizar em definitivo a desobediência às estruturas de dominação na sociedade norte-americana, ou seja, a emergência de uma música de caráter inovador que de imediato “adquiriu o valor de um manifesto e o seu título o valor de um slogan”, conforme assinalaram Philippe Carles e Jean-Louis Comolli em “Free Jazz – Black Power”.

A memória dessa semana de outubro de 1964 assentaria que nem uma luva nestes livro e antologia da Soul Jazz em que se procura ilustrar reações em cadeia ao ideário da exclusão. Veja-se como muitos dos que nela participaram logo se constituíram em organismo através da Guilda dos Compositores de Jazz. E atente-se à declaração de intenções que fizeram: “Elevar o estatuto social da música. Despertar nas massas a ideia de que a música é essencial nas suas vidas. Proteger músicos e compositores das atuais forças de exploração. Facultar o acesso à música. Criar condições para que a música possa ser criada, ensaiada e apresentada.” Numa Down Beat de maio de 1965, citada por Valerie Wilmer em “As Serious As Your Life”, o principal ideólogo da Guilda, Bill Dixon, informava que recrutou músicos brancos, por exemplo, porque, a seu ver: “estão a ser discriminados pelo simples facto de tocarem jazz”.

Isto, porque há certamente maneiras mais apelativas e elegantes de representar toda esta problemática, e evocar o período em que cada ida a estúdio foi um comício em prol das lutas anti-imperialistas que grassavam pelo globo, do que aquela que o fundador da Soul Jazz elegeu, e que se parece resumir à evidência de que, para uns, enquanto estatuto, a diferença começa e acaba na invariável e instantânea realidade da cor da pele. O que não explica a omissão de Dixon das presentes edições, mas, ficando-nos pelos seus associados, esclarece as ausências de Michael Mantler, Burton Greene, Alan Silva, Roswell Rudd, John Tchicai ou Paul e Carla Bley. Sobra a complicada tarefa de vislumbrar, então, no contexto do livro, que outra coisa poderá em comum haver entre John Coltrane e George Benson, digamos, ou entre Don Cherry e Jimmy Smith ou o Art Ensemble of Chicago e George Duke. Talvez que uns tratavam de inúmeras solicitações às civilizações africanas para impor uma nova ordem espiritual no mundo e outros reforçavam a importância da independência económica dentro de fronteiras? Vá-se lá saber.

Ainda assim, embora recorrendo a fotos de uma agência – o que implica uma visão exterior ao próprio movimento, a partir de materiais encomendados por agentes ou departamentos de promoção – eis o retrato de um tempo em que o jazz pôs a descoberto aparelhos ideológicos de opressão, subverteu hierarquias estéticas e culturais, rompeu com os seus traços mais pesadamente carregados de injustiças e exprimiu algo tão próximo da vida quanto das aspirações dos seus executantes. E mesmo se a história lhes foi ingrata, esse é um sonho que não morreu ontem ou hoje, nem morrerá amanhã.

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