Em notas de apresentação, o esloveno Mladen Dolar relembra
que há algo de “profundamente perturbador e inescrutável” na música de Carlo Gesualdo
(1566-1613), e nestes “Responsórios
para o Ofício de Trevas da Semana Santa” em particular: “É como se a sua
obra, perfeitamente integrada no
quadro litúrgico [do seu tempo], e derivada do canto gregoriano, fosse impelida
a ultrapassar as suas fronteiras e a transgredir a sua época e o seu contexto,”
diz. Depois, claro está, em breves traços biográficos, defende aquela espécie de
desígnio penitencial que a enquadra, e o que salta à memória é o gótico sotaque
de Werner Herzog, nos comentários de “Death for Five Voices” (1995): “Gesualdo
viveu os seus últimos 16 anos de vida neste castelo, isolado, atormentado,
dilacerado, perseguido por demónios. Os seus madrigais são a expressão de um
mundo espiritual mergulhado em loucura”. Parece Bram Stoker. Tudo, conforme formulou
Julio Cortázar, porque “encontrou a sua mulher na cama com outro homem e os
matou” – bom, também os mutilou, é certo, o que na altura, no mínimo, teria
sido razão para uma equipa da CMTV ir ao local. Mas, não importa – ao descrever
as ousadias formais de Gesualdo, aquela espécie de cromatismo em estado gasoso
de que se socorria, o seu tratamento do texto, que obriga a instalar uma
máquina de criptografia nos ouvidos, a pulverização da consonância, mais
esgarçada que as calças de ganga de adolescentes, etc., Dolar, Herzog e Cortázar
convocam toda e qualquer futilidade ao seu alcance para fazer de Hamlet e exclamar:
“O mundo está fora dos eixos!” Em “As Portas da Percepção”, de Huxley, que
nenhum deles citou, tudo isto é fruto da psicose da contrarreforma: “Mas pouco
importa que [seja uma obra] em pedaços. O conjunto pode ser caótico, mas cada
fragmento individual está no sítio certo, em representação de uma Ordem
Superior, que prevalece.” Coincidentia
oppositorum, dizia-se. “Portanto, a desintegração pode ter as suas
vantagens. Mas é perigosa. E se não encontramos o caminho de volta?” Pois, após
decompor a obra de Gesualdo em finas partículas, o Graindelavoix volta a aglomerá-la
num sinal de Saída.
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