20 de junho de 2020

Gesualdo: Tenebrae (Glossa, 2020)


Em notas de apresentação, o esloveno Mladen Dolar relembra que há algo de “profundamente perturbador e inescrutável” na música de Carlo Gesualdo (1566-1613), e nestes “Responsórios para o Ofício de Trevas da Semana Santa” em particular: “É como se a sua obra, perfeitamente integrada no quadro litúrgico [do seu tempo], e derivada do canto gregoriano, fosse impelida a ultrapassar as suas fronteiras e a transgredir a sua época e o seu contexto,” diz. Depois, claro está, em breves traços biográficos, defende aquela espécie de desígnio penitencial que a enquadra, e o que salta à memória é o gótico sotaque de Werner Herzog, nos comentários de “Death for Five Voices” (1995): “Gesualdo viveu os seus últimos 16 anos de vida neste castelo, isolado, atormentado, dilacerado, perseguido por demónios. Os seus madrigais são a expressão de um mundo espiritual mergulhado em loucura”. Parece Bram Stoker. Tudo, conforme formulou Julio Cortázar, porque “encontrou a sua mulher na cama com outro homem e os matou” – bom, também os mutilou, é certo, o que na altura, no mínimo, teria sido razão para uma equipa da CMTV ir ao local. Mas, não importa – ao descrever as ousadias formais de Gesualdo, aquela espécie de cromatismo em estado gasoso de que se socorria, o seu tratamento do texto, que obriga a instalar uma máquina de criptografia nos ouvidos, a pulverização da consonância, mais esgarçada que as calças de ganga de adolescentes, etc., Dolar, Herzog e Cortázar convocam toda e qualquer futilidade ao seu alcance para fazer de Hamlet e exclamar: “O mundo está fora dos eixos!” Em “As Portas da Percepção”, de Huxley, que nenhum deles citou, tudo isto é fruto da psicose da contrarreforma: “Mas pouco importa que [seja uma obra] em pedaços. O conjunto pode ser caótico, mas cada fragmento individual está no sítio certo, em representação de uma Ordem Superior, que prevalece.” Coincidentia oppositorum, dizia-se. “Portanto, a desintegração pode ter as suas vantagens. Mas é perigosa. E se não encontramos o caminho de volta?” Pois, após decompor a obra de Gesualdo em finas partículas, o Graindelavoix volta a aglomerá-la num sinal de Saída.

Sem comentários:

Enviar um comentário