22 de março de 2014

“Bal-Kan: Miel et Sang – Les Cycles de la Vie” (Alia Vox, 2013)



M. Azizoglu, G. Csík, I. Derebei, G. Dinçer, B. Dugic, L. Elmaleh, M. Figueras, H. Güngör, T. Limberger, M. Mauillon, A. Medunjanin, N. Nedyalkov, S. Outchikova, D. Psonis, Z. Spyridakis, A. Szalóki, Y. Tokcan, Hespèrion XXI, Jordi Savall (d)

Há cerca de 300 anos, Andrew Fletcher, arauto do nacionalismo escocês – assunto uma vez mais na ordem do dia –, mencionou qualquer coisa do género: “O homem a que fosse permitido compor todas as baladas de uma nação não haveria de se importar com quem lhe redigisse as leis”, porventura sob o pressuposto de que mais facilmente flui da pena de um poeta do que da de um legislador o efetivo retrato do comportamento e aspirações de todos quanto vivem em sociedade. Semelhante conjetura não deverá parecer estranha a Jordi Savall, que na apresentação desta imponente edição que expande o anteriormente postulado por “Esprit des Balkans” (trata-se, agora, de quase quatro horas em CD, e ensaios, material gráfico, textos cronológico e lírico, em 12 línguas, derramados pelas 600 páginas de um livro) escreve: “A música é a mais espiritual de todas as artes; e é, por excelência, a arte da memória: existe apenas quando um cantor ou um instrumentista a faz viver, e é então – com a beleza de uma voz ou a vitalidade de uma dança embriagando-nos os sentidos – que se consubstancia no nosso pensamento.” A consequência de tal consolidação é um pouco mais matizada do que o que este originário da Catalunha – essoutro terreno fértil para o separatismo –, com bonomia, sugere (“intensos mas fugidios instantes que trazem paz e alegria ou ternura e nostalgia aos nossos corações”), mas convirá não ignorar que Savall reflete acerca de uma região em que, de acordo com a formulação de Predrag Matvejevic, “o passado submerge a História”, isto é, em que, ao olhar-se para trás, se observa mais o mito do que a realidade.

Savall deduz outro tanto, mas não assume que tão especulativo tratamento dos factos dificilmente se compatibiliza com a abordagem historicista que aparenta patrocinar. Mas basta atentar à decomposição etimológica deste título – bal e kan são as palavras turcas para mel e sangue – para se verificar que não menospreza em absoluto a ambiguidade naquilo que propõe. E ainda que uma outra frase sua dê mostras de dever à fantasia (“Na península dos Balcãs, as tradições do mundo eslavo viviam em perfeita harmonia com tradições mais recentes, como o islão, trazido pelos turcos, ou o judaísmo, trazido pelos ladinos.”), serve de cartão-de-visita para o que conduz o ouvinte até ao século IV, e ao Império Bizantino, comportando pelo caminho expressões tradicionais, folclóricas e populares búlgaras, sérvias, macedónias, turcas, cipriotas, húngaras, albanesas, romenas, bósnias, gregas, sefarditas e ciganas veiculadas por quatro dezenas de intérpretes, e que constrói um mosaico subordinado a um ciclo idealizado por Montserrat Figueras antes de falecer: “Criação: Universo, Encontros & Desejos”, “Primavera: Nascimento, Sonhos & Celebrações”, “Verão: Encontros, Amor & Casamento”, “Outono: Memória, Maturidade & Viagem”, “Inverno: Espiritualidade, Sacrifício, Exílio & Morte” e “(Re)conciliação”. É óbvio que quanto ao certo se vai achar tudo isto interessante depende de quanto se aprecia a figura de Savall. O que não chega a impedir que se sinta empatia por toda esta música – por vezes mais comovente que convincente – que tem precisamente como mais-valia em tempo algum se ter visto, assim, conciliada com a esperança. Ouvi-la é passear alternadamente por um cemitério, por um campo de batalha, por uma biblioteca arruinada, e é, simultaneamente, tão natural quanto respirar. É sobreviver.

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