17 de dezembro de 2016

Transcendental: Daniil Trifonov plays Franz Liszt (Deutsche Grammophon, 2016)


Num depoimento recolhido por Misha Aster, produtor executivo deste “Transcendental”, vem agora Trifonov dizer-nos, à cautela, que Liszt era como o homem moderno, “consciente da extrema complexidade – e inclusivamente das contradições – da sua vida e das suas experiências”. Já em maio de 1865, no seu diário romano, como é costume lembrar-se, o historiador Ferdinand Gregorovius havia sido menos discreto: “Ontem avistei Liszt, em traje de abade; descia de uma carruagem de aluguer hackney, a sua batina preta de seda ironicamente volteando atrás de si, como Mefistófeles mascarado de monge.” Mas a intenção de ambos é semelhante: tornar a incoerência do virtuoso equiparável àquela espécie de fenda que se adivinha no destino da humanidade e que a figura do anjo caído tão bem representa. Também nas cartas se diria estar o encontro de Trifonov com a obra do húngaro. Ou, pelo menos, desde há coisa de cinco anos, quando Martha Argerich, em Lugano, comentou com o enviado do “Financial Times”, Andrew Clark, que o jovem pianista russo tinha “tudo e mais um pouco” para vingar, que “tecnicamente o que ele faz com as mãos é incrível”, que o seu toque é ao mesmo tempo “meigo e dotado de um elemento demoníaco” e que nunca tinha ouvido nada assim. Falando sobre Trifonov, Argerich trazia precisamente à memória o que Charles Hallé escreveu acerca de Liszt depois de assistir a um recital seu: “Não há para si qualquer dificuldade de execução, convertendo-se o extraordinário em mera brincadeira de crianças. Um dos méritos mais transcendentes entre os que o distinguem é a capacidade de manter uma pureza de som absolutamente cristalina até nas mais complicadas e, para os demais, impossíveis passagens”. Outro tanto pode afirmar-se do que Trifonov aqui faz com “Estudos de Execução Transcendental”, “Grandes Estudos de Paganini” e “Estudos de Concerto”. O que é o mesmo que dizer que toca Liszt de modo vagamente anacrónico, com aquela transparência de madrepérola de que nem Arrau (1976) – ou menos ainda Berman (1963) – se aproximou. O resultado pode ser demasiado poético para alguns, mas é o que se espera quando hoje se abordam peças que concentram em si muito do fulgor e um pouco do vulgar do que Trifonov considera “representações dinâmicas das experiências espirituais de uma alma romântica”.

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