Recordem-se ‘As Quatro Estações’ para
se reputar Vivaldi como um atento observador da natureza. Aquele que, com
semelhante alternância nos estados de espírito e singular horror à entropia, viria
a ilustrar a crónica bipolaridade veneziana. Aliás, muita da sua produção
concertante ficou marcada por uma fundamental dissimulação: a da identidade das
suas executantes, figlie del coro no Ospedale della Pietà, onde era maestro dei
concerti. Relatos do período mencionam a imperiosa necessidade de, a fim de
se deliciar com doces e com os sons que provinham de ocultas galerias como que do
céu, se dirigir o avisado viajante ao orfanato mal desse entrada na República. Jean-Jacques
Rousseau, ao serviço do embaixador francês na cidade, escrevia em “Confissões”:
“Não concebo nada mais voluptuoso que […]
estas exiladas meninas, de que apenas a música se permite atravessar as grades.”
Não descansando enquanto não lhes foi apresentado, continuava: “Tremia de
desejo ao dirigir-me à sua sala. ‘Venha, Sophia’… era horrorosa. ‘Entre,
Cattina’… cega de um olho. ‘Vem, Bettina’… desfigurada pela varíola.” Vivaldi havia
transformado camafeus em anjos. O que não será a menor das transcendentes
propriedades que os solistas do Café Zimmermann (Pablo Valetti, David Plantier,
Mauro Lopes Ferreira e Nicholas Robinson) encontram na segunda metade –
concertos 7 a 12 – deste “L’Estro Armonico”, de 1711. Menos conseguidos os
efeitos declamatórios nos nº10 (RV 580) e 12 (RV 265), há aqui momentos
insuperáveis: o dolente largo e spicatto do nº11 (RV 565), os cromáticos
adagio do 7 (RV 567), o majestoso larghetto do 9 (RV 230). Venha
o libro primo e poder-se-á falar de uma interpretação de referência.
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