Há alguma candura no modo de
relatar as torções que o guitarrista colombiano Abelardo Carbonó aplicou à genealogia
musical latino-americana. Porque, no fundo, a mais interessante decorrência desta
alucinada ação – maioritariamente captada entre 1980 e 1982 – é, precisamente, aquela
que, em termos estéticos, permite retratar a quimificação das substâncias
deglutidas e sua consequente excreção num produto que, senão inteiramente novo,
se revelava de inédito sentido de propriedade face às transitórias comunidades
que pilhava, traduzia e das quais se tornava não menos volátil referência. Lendo
o diarístico relato de Etienne Sevet e Lucas Silva – organizadores da compilação
e reconhecidos investigadores de vernáculo – no livreto desta antologia, ao
invés, deteta-se um ritual filosoficamente arcaico e marcado pela ipseidade, ou
seja, pela inventariação do caráter particular, individual, único de Abelardo.
Pouco se conta de um processo coletivo que resultou da fricção entre periferia
e centros urbanos, entre códigos regionais e nacionais, das suas inclusões e
exclusões, colisões e coligações. E menos ainda se diz acerca da velocidade com
que, imediatamente após cada gestação, tudo o que se produzia logo se tornava
datado. Aliás, a maior perversão na presente curadoria, que documenta enunciados
tão fascinantes quão efémeros, consiste na ressurreição artística do seu
sexagenário objeto – a confirmar ao longo de 2014.
Trata-se aqui, por isso, de um
sistema de amalgamento e, forçosamente, de perceção e conceção da própria
imagem, ancorado em maleáveis formulações afro-colombianas (como o porro, a cumbia e o vallenato) ou
em derivações rítmicas antilhanas e transatlânticas (com ênfase nas modas que
chegavam de Kinshasa, Abijão, Iaundé ou Nairobi e, sinceramente, em tudo o que
viesse à rede), melhor veiculado naquilo que se designou por champeta, manifestação cultural associada
às mestiçagens e, não sem elitismo, aos pobres. Mas, como facilmente se
comprova em qualquer estação de rádio ou televisão de Bogotá, Medellín ou
Barranquilla, nada comprometeu as suas capacidades de transcendência ou travou
a sua epidémica conquista de espaço nos circuitos comerciais colombianos. É – assimo consideraram Carmen Abril e Mauricio Soto no artigo “Entre la champeta y la pared” – como um “fenómeno de habitus
generacional y colectivo”, que na sua mais recente vaga ganhou o epíteto de
“terapia crioula”. Depois de “Palenque Palenque” (Soundway, 2010), “The Afrosound of Colombia” (Vampisoul, 2010) ou “Diablos del Ritmo” (Analog Africa, 2012),
eis de novo este mundo tão recente em que tanto ainda carece de nome, imune a
convencionalismos, precioso como um talismã, violentando a realidade.
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