Im, Fink, Güra,
Lehtipuu, Weisser, Wolff, RIAS Kammerchor, Staats- und Domchor Berlin, Akademie
für Alte Musik Berlin, René Jacobs (d)
Num depoimento informalmente tomado entre sessões de
gravação pela documentarista Sarah Blum, e agora reproduzido em DVD, tentando descrever
o significado exato de cantar árias da ‘Paixão’ espremida entre coros colocados
um frente ao outro, a meio-soprano argentina Bernarda Fink hesita e gesticula
com diligência, até que, num repente, traduz em palavras o movimento que
desenham no ar as suas mãos: “É como estar entre dois sóis”, por fim exclama, denunciando
com os olhos, mais do que com os lábios, um sorriso beato. Há na sua resposta
algo daquilo que lhe permite entregar-se com obstinação carpideira a ‘Buss und
Reu’ (“Penitência e remorso”) ou ‘Erbarme dich’ (“Tem piedade de mim”), num
efeito fiel à visão de René Jacobs, que, conforme formulação sua no inteligente
ensaio que redigiu para o livreto que acompanha esta edição, e não sem
redundância, labora aqui “por amor a Bach e pela glória de Deus”. Curiosamente
– como, aliás, não poderia deixar de ser, embora seja importante ressalvar –, professar
práticas piedosas não compromete uma investigação quase anatómica das condições
em que a obra, na sua expandida versão, foi na Sexta-Feira Santa de 1736
apresentada. De facto, de acordo com uma tese de Konrad Küster publicada em
1999, a execução da “Paixão Segundo São Mateus” nesse 30 de março obedeceu a um
radical impulso, assente na assimétrica divisão do ensemble pelos extremos opostos da nave central da Igreja de São
Tomás, em Leipzig. Em termos simbólicos – e pode falar-se de uma dramaturgia
teológica nesta conceção –, a principal consequência de tal arranjo espacial (igualmente
em disco, de trás para a frente e não, como estamos habituados, da esquerda
para a direita) observa-se na relação que o auditório estabelece com o segundo
coro, mais remoto, distante dos protagonistas, em que se verifica a
desorientação, impotência e frustrações bem patentes, por exemplo, em ‘Sind
Blitze, sind Donner in Wolken verschwunden?’ (“Estão os raios, estão os trovões
nas nuvens desaparecidos?”). Trata-se de uma forma literalmente profunda de
gerar compaixão pelo martírio de Jesus que Jacobs recriou em estúdio,
recorrendo a solistas (Werner Güra enquanto Mateus, Johannes Weisser no papel
de Cristo, e, além de Fink, também Sunhae Im, Topi Lehtipuu, Konstantin Wolff
ou Artuu Kataja) que, segundo prescrição do maestro, sintetizam impecavelmente o
misticismo dos oratórios, a dedicação ao texto do lied, e a sensualidade da ópera. Porventura a mais espiritual
interpretação da ‘Paixão’ de tempos recentes.
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