É fácil imaginar a cena: numa barraca
do Parque Mayer em meados dos anos 50, Joaquim Costa, “pequeno mas enérgico” (conforme
descrição na revista “Plateia” de outubro de 1963), aponta a mira aos matrecos,
ignorando o indomável topete que frustra uma cabeleira imaculadamente encerada;
os ouvidos, esses, mantem-nos colados à jukebox,
e pressente-se uma eternidade no tempo em que cada moeda demora a cair; pisca
os olhos e tudo se esfuma. Em meia dúzia de linhas dedicadas a Costa neste
“Portugal Eléctrico!”, Afonso Cortez passa da consagração à desgraça, dos
concertos na Feira da Estrela à vida anónima de um distribuidor de listas
telefónicas, esquadrinhando anos a fio o Campo de Santa Clara em busca do derradeiro
exemplar do acetato em que gravou êxitos de Bill Haley e Little Richard em 1959.
“O Joaquim, um pouco à semelhança do que se passou com Vítor Gomes, nunca prosseguiu
uma carreira comercial porque se recusou a cantar rock em português”, conta
agora Luís Futre. “As editoras impunham-no”, continua, “e dá-se uma lógica de
aclamação perniciosa, dependente dos concursos [como o do Monumental], em que
aumentava as probabilidades de vencer quem interpretasse um tema conhecido do
público e do júri”. O que o conduz à seguinte evidência: “Eles viveram a
cultura rock de maneira tão intensa que nunca tiveram estabilidade. O Joaquim, eletricista
e canalizador, nos anos 80 frequentava casas ocupadas por punks; o Vítor partiu amargurado do país e foi serralheiro e
alvenel, empregou-se em ranchos na Rodésia, enfim, deu-se mal”. Futre faz uma
pausa, agastado pela realidade que este invulgar vicariato a que se propôs o
fez confrontar, até que recorda uma anedota: “Em 1965, o Nelo do Twist diz numa
entrevista que cantava fados em Madrid porque em ‘Portugal os artistas são como
os frigoríficos: só fazem falta no verão’”. Em certa medida, este livro aparenta
ser tanto sobre possibilidades quanto acerca de impossibilidades. “Tens isso
tudo”, acrescenta Edgar Raposo, mais exegeta: “interessou-nos mostrar que
despertavam novas vontades nos jovens: de fazer, de participar, de se
expressarem por todo o país; o livro é sobre esses e para esses a que o rock
concedeu iniciativa e voz, que tinham menos possibilidades e que na música, ainda
que de modo fugaz, encontraram a glória”.
A propedêutica de Luís e Edgar
nesta disciplina não é de agora. Entre 2007 e 2008 organizaram duas exposições premonitórias:
“Ritmos – O Rock em Portugal 1955-1974”, no Barreiro, e “Nova Vaga - O Rock EmPortugal 1955-1974”, no Montijo, gerando, ainda, um catálogo em que se
publicaram originalmente os textos de Cortez que agora resumiram. Sabendo que a
explosão da contracultura é pautada pelos signos da rutura e descontinuidade, procuraram,
antes de mais, reunir material que documentasse visualmente posturas de dissensão
ou impulsos libertários. Sustentando que a emergência do rock não foi apenas
uma perturbação eucarística num país anestesiado pela ditadura, Futre acredita
que “primeiro deve mencionar o levantamento discográfico, bastante rigoroso e
exaustivo”. Elabora: “Partimos dos conjuntos de Shegundo Galarza ou Jorge
Machado porque aí se detetam esboços de estruturas pop,
e seguimos com Conchas, Daniel Bacelar, Conjunto Mistério, Pedro Osório,
Tártaros, Álamos, Ekos, Titãs, Conjunto João Paulo, Sheiks, etc. E por aí fora
dedicamos um capítulo a conjuntos femininos e cantoras, destacando a pioneira
Zurita de Oliveira, com o seu ‘Bonitão do Rock’, o EP em que Teresa Pinto
Coelho canta ‘Fever’, os discos em que Tonicha colaborou com o Quarteto 1111 ou,
por exemplo, aquele em que Teresa Paula Brito dá voz a poemas de Maria Teresa
Horta”. Todas estas capas se dispersam pelas cerca de 160 páginas de “Portugal
Eléctrico”, nem alfabética nem cronologicamente, antes dispostas em fluidas e
ocasionalmente caprichosas categorias: “Rock’n’Roll-Twist-Surf”;
“Girls-Miúdas-Senhoras”; “Beat-Garage-Psych-Pop”; “Folk-Psych-Progressivo”;
“Ex-Colónias-Exilados”; “Punk-Hard Rock-New Wave-Power Pop”. Por vezes esta
disposição deixa-se afetar pela incoerência, noutras obriga a uma certa
familiarização, incremental a cada instante em que se dá pela falta de índice
remissivo. E correm narrativas paralelas, que não apenas pela edição bilingue
português-inglês: umas nos textos de Cortez, João Carlos Callixto e Luís
Piedade, outras nas legendas das fotografias, e muitas mais em tudo o que se
sugere e no pouco que se torna explícito. Nessa perspetiva, trata-se de uma
monografia aberta, trazendo à lembrança o postulado de Umberto Eco que apontava
para a possibilidade de cada leitor se converter no autor do texto que lê. Só
assim se vai de encontro à função ativa deste passado.
“Parece-me que, com algumas
imperfeições, ilustrámos as mais significativas mudanças nessa era”, esclarece
Edgar: “A abertura ao que se estava a passar lá fora; a gradual consciencialização
política da juventude; a reação do regime; a carência de meios técnicos e
humanos; as imposições de mercado; e provámos que o rock, em Portugal, nunca foi
um privilégio da elite”. De facto, não é fácil conjugar a indeterminação. Para
mais quando escasseiam fontes e se “trabalha em condições de súbita
imprevisibilidade”, explica: “Tínhamos tudo pronto e fomos obrigados a voltar
ao início, tentando concluir em três semanas o que levou anos a conceber – isto
porque descobrimos que a coprodutora inicial do projeto, de que nos
desvinculámos, estava a planear uma edição com o mesmo acervo”. “Mas o
importante”, conclui, “é contribuir para que se olhe de outra forma para a nossa
herança musical, e que seja feito algo para a preservar”. Será o primeiro a ter
noção de que, neste domínio, já muito se perdeu. Daí a relevância do arquivo
fotográfico que aqui se partilha. Retratos de conjuntos como 4 Ases, Kzars,
Aquatiks, 5 Estrelas, Morcegos, GB4, Barões, Feras, Kings ou Snobs, que nunca
chegaram ao disco, revelam “que há agrupamentos a formar-se de norte a sul, e
nas ilhas”, lembra Futre: “Não só em Lisboa, Porto e Coimbra, mas também em Vizela,
Chaves, Oliveira de Azeméis, Setúbal, Elvas, Bragança ou Portimão”. Edgar está
certo de que “o rock é epidémico”. Luís regressa à surpresa com que verificou
que “muita desta gente se juntava para escutar as emissões da rádio Caroline [a
estação pirata britânica]; contou-me o Edmundo Pinto, dos Tubarões [de Viseu],
mas também mo disseram os músicos dos Neptunos [Montijo] ou dos Cometas Negros
[Castelo Branco]. O ‘Franjas’, dos Steamers, fala de grupos de trinta pessoas
no IST a sintonizar a onda curta”. Por falar em Técnico, importa referir dois
dados estatísticos que – cruzados com o exponencial crescimento da procura
turística no período – ajudam a contextualizar o argumento: na “Plateia” de
agosto de 1966 contabilizam-se oito mil gira-discos em Portugal; já na de
agosto de 1969, a Casa Gouveia Machado estima ter ao longo dessa década vendido
instrumentos musicais para equipar três mil conjuntos. Os discos são uma ínfima
parte desta história.
“Portugal Eléctrico” trata ainda de
uns quantos vazios. Primeiro, do económico, que se depreende desta declaração
de Futre, que terá achado que a nostalgia pode ser inoportuna: “Tinha recortes
publicitários das lojas Porfírios, da TAP, da cerveja Cuca, da Mary Quant,
anúncios da VW com cores psicadélicas, um sinal de que o mercado jovem estava
em expansão. Depois, falava com músicos que viviam na periferia, que cantavam
sobre bairros da lata, que construíam à mão instrumentos, que recebiam cachês
pagos em comida, ou com outros que falavam do regresso de mutilados da frente…
e pus tudo de lado”. Segundo, naturalmente, o da Guerra Colonial, apesar do
livro incluir interessantes capítulos sobre o rock dos – passe o pleonasmo –
Rocks, Rebeldes, Night Stars, Gémeos VI ou Inflexos em Angola e Moçambique.
Terceiro, aquele que a censura causou, principalmente quando Ekos, Quarteto
1111, Conjunto João Paulo, Steamers ou Filarmónica Fraude elevam o potencial de
insurreição da metáfora. Quarto, e mais paradoxal, o que surge com a revolução
do 25 de Abril. Isto é, no momento em que mais cúmplice fica o meio social, e
que se presume poder valorizar o primado do prazer – praticamente socialista –
que se identificava no rock, a libertação de energias é, com as habituais
exceções, feita pela cantiga de intervenção de terra na unha. “Portugal
Eléctrico” contraria um peculiar atavismo português: que se olvide da memória o
passado recente quando só pela sua evocação se pode assumir plenamente o
futuro. Não sendo o único, não é de somenos importância este seu mérito.
Org: Edgar Raposo e Luís Futre
Textos: Afonso Cortez, João Carlos
Callixto, Luís Piedade
Groovie Records
162 págs.
20 euros
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