4 de janeiro de 2014

Entrevista a Luís Futre e Edgar Raposo, autores de "Portugal Eléctrico! Contracultura Rock 1955-1982"



É fácil imaginar a cena: numa barraca do Parque Mayer em meados dos anos 50, Joaquim Costa, “pequeno mas enérgico” (conforme descrição na revista “Plateia” de outubro de 1963), aponta a mira aos matrecos, ignorando o indomável topete que frustra uma cabeleira imaculadamente encerada; os ouvidos, esses, mantem-nos colados à jukebox, e pressente-se uma eternidade no tempo em que cada moeda demora a cair; pisca os olhos e tudo se esfuma. Em meia dúzia de linhas dedicadas a Costa neste “Portugal Eléctrico!”, Afonso Cortez passa da consagração à desgraça, dos concertos na Feira da Estrela à vida anónima de um distribuidor de listas telefónicas, esquadrinhando anos a fio o Campo de Santa Clara em busca do derradeiro exemplar do acetato em que gravou êxitos de Bill Haley e Little Richard em 1959. “O Joaquim, um pouco à semelhança do que se passou com Vítor Gomes, nunca prosseguiu uma carreira comercial porque se recusou a cantar rock em português”, conta agora Luís Futre. “As editoras impunham-no”, continua, “e dá-se uma lógica de aclamação perniciosa, dependente dos concursos [como o do Monumental], em que aumentava as probabilidades de vencer quem interpretasse um tema conhecido do público e do júri”. O que o conduz à seguinte evidência: “Eles viveram a cultura rock de maneira tão intensa que nunca tiveram estabilidade. O Joaquim, eletricista e canalizador, nos anos 80 frequentava casas ocupadas por punks; o Vítor partiu amargurado do país e foi serralheiro e alvenel, empregou-se em ranchos na Rodésia, enfim, deu-se mal”. Futre faz uma pausa, agastado pela realidade que este invulgar vicariato a que se propôs o fez confrontar, até que recorda uma anedota: “Em 1965, o Nelo do Twist diz numa entrevista que cantava fados em Madrid porque em ‘Portugal os artistas são como os frigoríficos: só fazem falta no verão’”. Em certa medida, este livro aparenta ser tanto sobre possibilidades quanto acerca de impossibilidades. “Tens isso tudo”, acrescenta Edgar Raposo, mais exegeta: “interessou-nos mostrar que despertavam novas vontades nos jovens: de fazer, de participar, de se expressarem por todo o país; o livro é sobre esses e para esses a que o rock concedeu iniciativa e voz, que tinham menos possibilidades e que na música, ainda que de modo fugaz, encontraram a glória”.

A propedêutica de Luís e Edgar nesta disciplina não é de agora. Entre 2007 e 2008 organizaram duas exposições premonitórias: “Ritmos – O Rock em Portugal 1955-1974”, no Barreiro, e “Nova Vaga - O Rock EmPortugal 1955-1974”, no Montijo, gerando, ainda, um catálogo em que se publicaram originalmente os textos de Cortez que agora resumiram. Sabendo que a explosão da contracultura é pautada pelos signos da rutura e descontinuidade, procuraram, antes de mais, reunir material que documentasse visualmente posturas de dissensão ou impulsos libertários. Sustentando que a emergência do rock não foi apenas uma perturbação eucarística num país anestesiado pela ditadura, Futre acredita que “primeiro deve mencionar o levantamento discográfico, bastante rigoroso e exaustivo”. Elabora: “Partimos dos conjuntos de Shegundo Galarza ou Jorge Machado porque aí se detetam esboços de  estruturas pop, e seguimos com Conchas, Daniel Bacelar, Conjunto Mistério, Pedro Osório, Tártaros, Álamos, Ekos, Titãs, Conjunto João Paulo, Sheiks, etc. E por aí fora dedicamos um capítulo a conjuntos femininos e cantoras, destacando a pioneira Zurita de Oliveira, com o seu ‘Bonitão do Rock’, o EP em que Teresa Pinto Coelho canta ‘Fever’, os discos em que Tonicha colaborou com o Quarteto 1111 ou, por exemplo, aquele em que Teresa Paula Brito dá voz a poemas de Maria Teresa Horta”. Todas estas capas se dispersam pelas cerca de 160 páginas de “Portugal Eléctrico”, nem alfabética nem cronologicamente, antes dispostas em fluidas e ocasionalmente caprichosas categorias: “Rock’n’Roll-Twist-Surf”; “Girls-Miúdas-Senhoras”; “Beat-Garage-Psych-Pop”; “Folk-Psych-Progressivo”; “Ex-Colónias-Exilados”; “Punk-Hard Rock-New Wave-Power Pop”. Por vezes esta disposição deixa-se afetar pela incoerência, noutras obriga a uma certa familiarização, incremental a cada instante em que se dá pela falta de índice remissivo. E correm narrativas paralelas, que não apenas pela edição bilingue português-inglês: umas nos textos de Cortez, João Carlos Callixto e Luís Piedade, outras nas legendas das fotografias, e muitas mais em tudo o que se sugere e no pouco que se torna explícito. Nessa perspetiva, trata-se de uma monografia aberta, trazendo à lembrança o postulado de Umberto Eco que apontava para a possibilidade de cada leitor se converter no autor do texto que lê. Só assim se vai de encontro à função ativa deste passado.

Parece-me que, com algumas imperfeições, ilustrámos as mais significativas mudanças nessa era”, esclarece Edgar: “A abertura ao que se estava a passar lá fora; a gradual consciencialização política da juventude; a reação do regime; a carência de meios técnicos e humanos; as imposições de mercado; e provámos que o rock, em Portugal, nunca foi um privilégio da elite”. De facto, não é fácil conjugar a indeterminação. Para mais quando escasseiam fontes e se “trabalha em condições de súbita imprevisibilidade”, explica: “Tínhamos tudo pronto e fomos obrigados a voltar ao início, tentando concluir em três semanas o que levou anos a conceber – isto porque descobrimos que a coprodutora inicial do projeto, de que nos desvinculámos, estava a planear uma edição com o mesmo acervo”. “Mas o importante”, conclui, “é contribuir para que se olhe de outra forma para a nossa herança musical, e que seja feito algo para a preservar”. Será o primeiro a ter noção de que, neste domínio, já muito se perdeu. Daí a relevância do arquivo fotográfico que aqui se partilha. Retratos de conjuntos como 4 Ases, Kzars, Aquatiks, 5 Estrelas, Morcegos, GB4, Barões, Feras, Kings ou Snobs, que nunca chegaram ao disco, revelam “que há agrupamentos a formar-se de norte a sul, e nas ilhas”, lembra Futre: “Não só em Lisboa, Porto e Coimbra, mas também em Vizela, Chaves, Oliveira de Azeméis, Setúbal, Elvas, Bragança ou Portimão”. Edgar está certo de que “o rock é epidémico”. Luís regressa à surpresa com que verificou que “muita desta gente se juntava para escutar as emissões da rádio Caroline [a estação pirata britânica]; contou-me o Edmundo Pinto, dos Tubarões [de Viseu], mas também mo disseram os músicos dos Neptunos [Montijo] ou dos Cometas Negros [Castelo Branco]. O ‘Franjas’, dos Steamers, fala de grupos de trinta pessoas no IST a sintonizar a onda curta”. Por falar em Técnico, importa referir dois dados estatísticos que – cruzados com o exponencial crescimento da procura turística no período – ajudam a contextualizar o argumento: na “Plateia” de agosto de 1966 contabilizam-se oito mil gira-discos em Portugal; já na de agosto de 1969, a Casa Gouveia Machado estima ter ao longo dessa década vendido instrumentos musicais para equipar três mil conjuntos. Os discos são uma ínfima parte desta história.

“Portugal Eléctrico” trata ainda de uns quantos vazios. Primeiro, do económico, que se depreende desta declaração de Futre, que terá achado que a nostalgia pode ser inoportuna: “Tinha recortes publicitários das lojas Porfírios, da TAP, da cerveja Cuca, da Mary Quant, anúncios da VW com cores psicadélicas, um sinal de que o mercado jovem estava em expansão. Depois, falava com músicos que viviam na periferia, que cantavam sobre bairros da lata, que construíam à mão instrumentos, que recebiam cachês pagos em comida, ou com outros que falavam do regresso de mutilados da frente… e pus tudo de lado”. Segundo, naturalmente, o da Guerra Colonial, apesar do livro incluir interessantes capítulos sobre o rock dos – passe o pleonasmo – Rocks, Rebeldes, Night Stars, Gémeos VI ou Inflexos em Angola e Moçambique. Terceiro, aquele que a censura causou, principalmente quando Ekos, Quarteto 1111, Conjunto João Paulo, Steamers ou Filarmónica Fraude elevam o potencial de insurreição da metáfora. Quarto, e mais paradoxal, o que surge com a revolução do 25 de Abril. Isto é, no momento em que mais cúmplice fica o meio social, e que se presume poder valorizar o primado do prazer – praticamente socialista – que se identificava no rock, a libertação de energias é, com as habituais exceções, feita pela cantiga de intervenção de terra na unha. “Portugal Eléctrico” contraria um peculiar atavismo português: que se olvide da memória o passado recente quando só pela sua evocação se pode assumir plenamente o futuro. Não sendo o único, não é de somenos importância este seu mérito.

Org: Edgar Raposo e Luís Futre
Textos: Afonso Cortez, João Carlos Callixto, Luís Piedade
Groovie Records
162 págs.
20 euros

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