Em Janeiro de 97, Omara Portuondo e Chucho Valdés gravaram um disco de duetos chamado “Desafios” – comovente decantação dos princípios do bolero até ao ponto da irredutibilidade, sublime ensaio sobre a poética amorosa na canção hispano-americana e elegante meditação sobre o provisório e o eterno – que, mal chegou às lojas, se viu irremediavelmente esmagado pelas toneladas de nostalgia derramadas por “Buena Vista Social Club”. De facto, provava-se irresistível para o grande público a simplificação ideológica de um projecto apresentado como um descongelamento cultural e assente no eufemístico discurso do ‘esquecimento’. A Omara, entre tantos outros, valeu uma ressurreição, mas não chegou para inverter a política norte-americana de embargo a Cuba. Um ano mais tarde chegavam ainda aos EUA os discos de Chucho na Blue Note através da EMI canadiana e uma ameaça de bomba obrigava a uma alteração de planos relativamente a um concerto em Miami de Valdés, Portuondo, Guillermo Rubalcaba e Compay Segundo, apontados por compatriotas expatriados como colaboradores do regime de Fidel. Catorze anos depois continua Omara com a vida complicada cada vez que chega a um aeroporto na Flórida, com manifestações de repúdio e jornalistas a perguntar, por exemplo, a razão de ter participado numa recente reunião da ALBA (atual Aliança Bolivariana para os Povos da Nossa América) cantando para Hugo Chávez e estendendo a mão a um beijo de Raúl Castro. A questão, de certa forma, ganha pertinência numa reflexão estética: porque a verdade é que muita da produção de Chucho e Omara na última década aparenta derivar da renúncia ao exílio, sugerindo, no que isso implica de distanciamento do mundo, depender artisticamente da sua permanência em Havana. Ouvindo esta sua nova gravação será inegável concluir, também, que quanto mais longe da realidade dos outros se situam, melhor ficam.
“Omara & Chucho” abre com ‘Noche Cubana’ e ‘Llanto de Luna’, que em 59 Omara incluiu no seu primeiro LP. Alternar entre versões separadas por mais de meio século é como assistir a um interminável eclipse. Da voz desapareceu o brilho e a radiância juvenil, o controlo da respiração no prolongamento das notas, a precisão nas passagens de escala ou, inevitavelmente, a gaiatice de quem se julga imune à força das letras que canta. Por outro lado, ganhou-se tudo o resto. Se o arranjo original de ‘Llanto de Luna’ imitava o “West Side Story” e Omara, soberba, ridicularizava o sentimentalismo de uma frase como “llaga de amor que no puede sanar/ si me faltas tú”, agora, com um prelúdio de Chucho que cita a ‘Sonata ao Luar’, de Beethoven, a melodia é lançada ao mar e quase se afunda, com a grave voz da protagonista guiada pelas ondas, fatalmente ferida pela própria vida. A escolha dos temas, de César Portillo de la Luz e Julio Gutiérrez, inspira ainda a ideia, sustentada pelo alinhamento de ‘Y Decidete Mi Amor’ e ‘Nuestra Cobardia’, de José Antonio Méndez, ou ‘Recordaré Tu Boca’, de Tania Castellanos, que este se trata de um disco consagrado ao fílin (hispanização do inglês feeling), a corrente desenvolvida nos anos 30 e 40 enquanto reacção ao excesso de melodrama na música latina. É, nessa medida, uma ilustração da biografia de Omara, que com Elena Burke ou Moraima Secada foi uma das estrelas do movimento. Mas o seu triunfo maior reside na transcendência de qualquer género e na sujeição do repertório à experiência dos seus intérpretes. Poderá ser graças a Chucho – contido quando a palavra o exige e arrebatado quando dela se solta – que Omara gravou o seu mais belo disco, ou será – porque de uma branda entoação na garganta desponta a sombra do blues e de um vago rumor se produz uma elegia – o inverso verdadeiro. Ou, então, tudo não passa de um pretexto para dois velhos amigos dizerem que da sua dor só eles sabem; das alegrias também.
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