30 de julho de 2011

Entrevista a Marcelo Camelo

Em “4”, o derradeiro álbum dos Los Hermanos, pressentia-se um emergente paradigma autoral cuja plena manifestação dependia da supressão da coerência estética e formal normalmente associada a bandas. Anunciado o hiato, em 2007, a acção dos seus principais compositores – Marcelo Camelo a solo e Rodrigo Amarante nos Little Joy – deu asas à ideia, mas foi Camelo, com “Sou/Nós”, que melhor a concretizou. Numa simultânea manifestação de géneros (pós-rock, samba, choro, música clássica) e tempos (mítico, histórico, psicológico, diegético), produziu um disco com a eternidade no horizonte, a que dá agora seguimento.

“Sou/Nós” continha canções que evidenciavam a problemática da sua organização. Em “Toque Dela” identifico inquietações semelhantes. Interessa-lhe explorar os limites da sua linguagem?
Estar no limite das minhas possibilidades é, para mim, um sinal específico de avanço. Exploro o que ainda não conheço como um método para obter novos resultados. Há uma certa orientação inicial para a diferença que se vai solidificando conforme o novo método se estabelece. O motivo disso posso intuir que é um amor por aquilo que não sinto, não sei, não vejo, nem ouço.

Apesar do muito que os une, que razões o levaram a distanciar formalmente este álbum do anterior?
São muitas razões somadas a dançar num jogo de forças. Esse jogo é fluido e leva-me para lugares muito diferentes em cada consideração. No entanto, o resultado deste jogo, que sempre se concretiza num disco, modifica aquele plano inicial de onde parti. De modo que ao final de um disco ou de uma tournée já não sou aquele que compôs as forças conflituantes que lhe estão na origem. É através desta modificação que a própria música causa na gente que o jogo de novas perguntas se estabelece. Por isso, as diferenças entre um disco e outro são as marcas da mudança. Representam a geografia deste percurso invisível. O tanto que os discos se parecem é o tanto que eu não mudei.

“Toque Dela” distingue-se também nos arranjos para instrumentos de sopro. Referindo-me à espessura tímbrica e cromática que proporcionam tuba, trombone, fliscorne ou sax barítono, porquê a abordagem?
Gosto de fazer uso do naipe em geral como um elemento estético quase separado do resto do conjunto. É uma peça que entra com protagonismo e autonomia, em oposição à ideia de um arranjo que se misture e esconda entre os elementos. Faço isso para manter a linguagem narrativa da voz – e assim a linha que conduz o resto – sem ter que usar em excesso a própria voz ou recorrer à letra, que tanto exige da nossa percepção. É como se mantivesse o fio da história que estou a contar sem ter de chamar demasiada atenção.

Partes de “Toque Dela” são dominadas por uma guitarra que não destoaria numa sequência entre Buddy Holly ou Shadows. Presumindo que não formularia as coisas exactamente nestes termos, pergunto-lhe antes: qual a importância da intuição no momento destas escolhas?
Eu só tenho intuição. É a minha maior aliada, a minha bússola. Acho que deve ser assim com todo mundo, não? Entendo muito pouco tecnicamente do que está acontecendo e sempre uso metáforas para tratar daquilo que estou cuidando no disco: “Um clima mais pôr-do-sol”, “o Elvis em cima de um Volkswagen”, “o vento num carro descapotável”. O que importa é o plano geral das coisas. Os detalhes estão ao serviço desta expressão maior que está bastante contida numa primeira audição. Foi neste lugar que tentei atuar neste disco, me opondo ao anterior onde voltei a minha intuição para um lugar menos localizado no tempo e no espaço.
Noto neste disco a presença metafórica do mar (há instrumentos que o imitam, crescendos e decrescendos que o lembram, abundam ritmos litorâneos, letras explicitam-no). Foi algo presente no seu espírito?
Acho que venho caminhando para esta ausência de pulso firme e pela escolha desta ideia rítmica mais fluida desde o primeiro disco. Boa parte do que faço tem a ver com um sentimento que não é representado pelo som que ouço na rua. É uma tentativa de ouvir mais uma música que bate de acordo com o compasso da minha percepção. Eu sinto em mim uma música com mais simultaneidade do que com elementos estanques. Sinto as ideias e os conceitos e as noções se sobreporem mais do que se anularem. E sinto as horas do dia, os minutos, os segundos, passando cada qual com o seu tempo, com a sua vontade. Tento fazer uma música que obedeça a este fluxo porque sinto que é um jeito de perceber as coisas que não encontra muita representação, principalmente na música pop, que é o que eu faço.

Continua a utilizar ritmos tradicionais (europeus, afro-brasileiros, caribenhos), mas raramente abandona o seu contexto específico enquanto compositor, quase como se definisse dois planos de ação simultâneos. É um diálogo que julga importante estabelecer nesses termos?
Acho que parte disso vem do canto imemorial da música regional, dos nómadas deste mundo que trouxeram para os cantos do planeta esses sopros ciganos, esses lamentos de três acordes, essa música que está no vento que bate há muito. E a parte que contextualiza isso tudo sou eu mesmo, em 2011, existindo. Não chego a achar importante manter-me de pé diante destes fenómenos rítmicos etéreos, simplesmente por nem sequer pensar nesse aspecto. Acho que a própria sinceridade ao tratar aquilo que você faz te localiza no tempo e espaço, e se você dialoga com forças mais antigas que a sua presença pode dar a entender que está ciente dessa conversa.

Algumas letras de “Toque Dela” revelam um grau de depuração poética inédito na sua obra. Quer falar-nos um pouco sobre o processo que o conduziu a textos de mais evidente disposição arquetípica, menor linearidade narrativa e sem notória dimensão política?
Venho, na hora de escrever, tentando desligar a parte de mim com senso crítico, com consciência direcionada. Misturar o momento de composição com o meu quotidiano, fazê-lo menos estanque da vida vivida. Tenho tentado me imbuir de uma falta de intenção que conduza à distração e que, por isso, consiga mergulhar fundo no meu inconsciente e trazer palavras e motivos que são mais reveladores da minha condição, mesmo para mim. Acredito que este método contém algo de extremamente político, no sentido mais pessoal de todos: o da política da transformação do indivíduo. Tento fazer isso não através de um ataque frontal às ideias e ao jeito de pensar das pessoas, mas de um jeito sinuoso, justificando as minhas melodias com ideias análogas a si e vice-versa. Para mim não há distinção entre o texto e a melodia. Tento estar distraído para uma enquanto faço a outra. Não escrevo sobre as coisas, escrevo com elas. Como a Maria Gabriela Llansol, que me acompanha.

Tão importante quanto as palavras que canta acaba por ser também a maneira de as cantar. A sua voz surge aqui como um instrumento musical que praticamente desfaz hierarquias. É uma opção consciente?
Acho que tem origem na descrença da palavra como signo de uma realidade objetiva. E também acho que é uma opção que se mistura com uma intenção que se mistura com aquilo que não se escolhe. Aquilo que é nosso. O canto é como a dança de alguém, como o timbre da voz, o olhar. É dessas coisas que moram antes da escolha.

Os seus discos a solo sublinham uma problemática interessante, pois revelam-no ainda mais permeável a colaborações e contribuições exteriores. Pode ainda o seu trabalho ser visto como uma manifestação colectiva?
Claro. Eu participo ativamente de tudo: da escolha das pessoas, das gravações, da capa. Mas sem o outro não existe nada, nem qualquer consideração. Fiz a música ‘Saudade’ para a Clara gravar [a pianista Clara Sverner, que em “Sou/Nós” interpretou dois temas a solo] por causa de uma música homónima que ela gravou da Chiquinha Gonzaga. Eu fiz aquela música para a Clara, por isso fui chamá-la para o disco. Acho que é um disco sobre as pessoas e o que causamos umas nas outras.

E em que medida o estabelecimento de uma nova parceria – penso concretamente no grupo Hurtmold – lhe permite desenvolver novas soluções estéticas?
É também uma aprendizagem não verbal. Repara como numa banda antiga os elementos se encaixam uns nos outros? No Hurtmold, no Los Hermanos, isso é trabalho de anos que se mistura com a vida. Aprendemos a tocar por causa do jeito do cara do lado tocar e ao fim de dez anos parece que a banda nasceu para tocar junta. Hoje já posso pensar numa composição que vá ao encontro do jeito do Hurtmold tocar. A informação que vem daí é matéria-prima para novas composições.

Por outro lado, há temas em “Toque Dela” em que toca todos os instrumentos. Talvez sejam as canções a ditá-lo, mas é importante para si ter a liberdade de determinar tudo o que acontece num tema seu?
Ainda venho lidando com as dificuldades e facilidades deste processo. Se você, por exemplo, faz o óbvio, ou seja, aquilo que a canção obviamente pede, é capaz de entrar num terreno de lugares-comuns. Muitas vezes o trabalho é uma busca pelo inusitado, por aquilo que não lhe soa natural. Essa busca é intelectual ou afetiva. Fazer música é um jogo de muitas peças. Sinto-me feliz por ter estado no Los Hermanos por tantos anos porque fazíamos de tudo e aprendemos muito uns com os outros. Mas, para mim, o mais importante tem sido poder estabelecer quando começar e quando parar. Poder controlar o tempo de cada processo. Porque as composições e a vontade de fazer um disco ou uma digressão são movimentos muito individuais. E muitas vezes contrariá-los é contrariar a própria razão de se fazer música.

O verso “Triste é viver só de solidão” traz à memória ‘Triste’, de Jobim, e “Eu não sou daqui, também marinheiro” lembra o ‘Marinheiro Só’ cantado por Caetano. É um desejo consciente de citar e envolver-se com a tradição ou manifesta antes uma técnica de associação livre?
Acho que é como aquilo do diálogo entre mim como compositor com o que é normativo, tradicional, estabelecido. É um contato que se dá na hora do silêncio, na ausência de intenções, por assim dizer. Não tinha tomado consciência dessas referências. São músicas que fazem parte do imaginário brasileiro. Estão aqui como estão os carros, as árvores, os amigos.

“Sou/Nós” influencia “Toque Dela” e o inverso também poderá ser considerado verdadeiro. Juntos, mais do que um estilo pessoal, sugerem um sistema de pensamento permeável a fenómenos extra-musicais?
Acho que a cabeça de um artista é sinestésica – a de todo o mundo, não é? Então não existe muito essa distinção na hora de apreender um fenómeno. Os fenómenos externos manifestam na gente um sentimento. É este sentimento que o artista toca. O método, o instrumento, são só detalhes oficiosos. Eles nos modificam também, mas o artista está antes disso.

As palavras mais repetidas em “Toque Dela” são: “amor”, “solidão”, “sol”, “noite”, “cidade”, “mar” e “despedida”. Perfilam de facto um ideário pessoal ou prefere que permaneçam imunes à estatística semântica?
Mais do que revelar um motivo acho que elas são pegadas de uma condição. No entanto, não está ainda claro para mim se, no jogo de imagem que propomos ao realizar uma obra, exclamamos o que somos ou o que queremos ser. Ou se as duas coisas podem ser apenas uma.

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