Filmados nas sessões de gravação deste álbum, há, em “Chico: Bastidores”, depoimentos de Chico Buarque sobre as novas canções, os ensaios ou os músicos que o acompanham. O estilo desprendido com que apresenta o processo, a curta duração de cada vídeo e a enumeração de dados triviais servem fins promocionais – metade do material carregado para o endereço entre 20 de Junho e 20 de Julho, data oficial de lançamento de “Chico”, estava exclusivamente acessível mediante a apresentação de uma senha atribuída com a pré-encomenda do disco – mas pouco revelam sobre deliberações artísticas cruciais ao seu entendimento. Excepto – e só a incapacidade de tratar criticamente a informação reunida durante a iniciativa, aliada à necessidade de gerar conteúdos diários, explicará o indiferenciado tratamento que recebeu a afirmação – quando diz o cantautor: “conheço cada vez melhor o meu instrumento [o violão]. Posso ir onde eu não ia; encontrar um caminho que era insuspeitado por mim há seis anos atrás. Tenho mais liberdade: às vezes parece que posso fazer tudo com a harmonia de uma canção. O que aconteceu desta vez é que talvez eu tenha amadurecido mais cada composição. Nada está ali por acaso” (no clip “Amadurecimento”, de 4 de Julho).
Efectivamente, temas como ‘Querido Diário’, ‘Se Eu Soubesse’ ou ‘Sem Você 2’ possuem uma riqueza cromática capaz de lembrar as parcerias – enquanto letrista – com Tom Jobim e, obviamente, Edu Lobo, em que, como então se dizia, todas as sílabas cantam (num ensaio de 1966, intitulado “Balanço da Bossa Nova”, o maestro Júlio Medaglia salientava os recursos de um texto que “não apenas significa, mas também soa”). E talvez se possa atribuir a esse maior domínio técnico sobre a música um inesperado relaxamento nos códigos poéticos – depurados e economicamente empregues –, que, nem por isso, compromete a rigorosa métrica. Ou, quem sabe, correspondem estas canções ao momento em que o escritor Chico Buarque passou a escrever letras mais como compositor do que como romancista. Porque se despem totalmente de artifício os múltiplos diálogos que, nessa perspectiva, aqui se estabelecem, integrando este repertório o cânone buarqueano com maior naturalidade do que – excluindo partes de “Paratodos”, em 1993 – quase toda a sua produção dos últimos 25 anos.
Pode entender-se à luz da renovação desse espaço singular a frase com que, no site, se refere a ‘Essa Pequena’: “é… tipo um blues. Aqui é tudo tipo alguma coisa: tipo um baião, tipo samba, tipo uma valsa. É tipo um CD”. A referência ao blues por quem cantou ‘Bancarrota Blues’, ‘O Último Blues’ ou ‘Bolero Blues’ é eminentemente biográfica, e a canção (e o verso “Meu tempo é curto, o tempo dela sobra/ meu cabelo é cinza, o dela é cor de abóbora”) reflecte sobre a paixão de um homem maduro por uma mulher mais jovem na altura em que o sexagenário Chico namora com a cantora Thaís Gulin, de 31 anos, reforçando-se a intertextualidade da leitura com a conclusão do narrador: “sinto que ainda vou penar com essa pequena, mas/ o blues já valeu a pena”. O que permitirá concluir, com redundância, que este “Chico” é tanto sobre o homem quanto sobre a obra. Ou, mais precisamente, pela passagem do tempo pelo homem e do homem pelo tempo, testemunhada em ‘Rubato’ (onde surge ainda a literária temática do duplo actualizada para um meio, da eufemística ‘influência’ à ‘pirataria’, em que impera o roubo) e na proustiana ‘Barafunda’ (com frases como “Era Aurora/ não, era Aurélia/ ou era Ariela/ não me lembro agora” e “foi na Penha/ não, foi na Glória/ gravei na memória/ mas perdi a senha”), e na forma em que, por entre patenteadas valsas murchas e voluntariosas marchas, se desenham arcos temporais para o passado (‘Querido Diário’ recorda ‘Pedro Pedreiro’ e ‘Sou Eu’ evoca ‘Você Não Ouviu’, ambas há 45 anos atrás incluídas na sua estreia), até, com ‘Tipo Um Baião’, se atingir um ponto de elegante sincretismo em que tudo fica já tipo um Chico.
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