Em “Song of the Outcasts”, o seu livro dedicado ao flamenco, Robin Totton escreve que num género em que “melodia e harmonia pouco ou nada contam” tudo depende da leitura da palavra, da “compreensão da sua força rítmica e tonal” e, fundamentalmente, “de uma expressiva gestão do tempo”. E sugere que o desafio lançado aos seus cantores equivale a colocar alguém perante uma escadaria e pedir que a desça e suba iludindo os ângulos rectos dos degraus, como se de um arco se tratasse. Nessa perspectiva, nas suas mais ortodoxas categorias – tonás, siguiriyas, soleares – a voz pressupõe um acto de equilibrismo, enquanto que nos cantes de ida y vuelta – variantes permeáveis a matizes latino-americanas – aparentam relaxar-se os seus códigos. Mas basta ouvir Antonio “el Pescaílla” González, expoente da rumba catalã desde finais dos anos 40, para se compreender que o gozo em levar a canção cigana para longe dos seus princípios fundamentais se aliava à delícia de os aplicar em formas que lhe eram extrínsecas. “Tiritando” apresenta o caso quando tudo estava já decidido, ao concentrar-se em gravações para a Belter a partir da década de 60, período em que Pescaílla se dedicava quase exclusivamente à carreira da sua muito mais famosa esposa, Lola Flores. Daí, talvez, o pendor recreativo das suas versões de boleros como ‘Levántate’, do cubano José Dolores Quiñones, ou ‘Sabor a Mi’, do mexicano Álvaro Carrillo, ou a opção por tratar de modo absurdamente onomatopeico a ‘Garota de Ipanema’, de Jobim. A sua acção tanto contraria cânones interpretativos quanto, muito antes dos Gipsy Kings, promove uma espécie de ‘flamenco para o jet set’. E embora se fale sempre em emasculação quando num meio patriarcal um homem vive na sombra de uma mulher, a sua grande ilusão foi sugerir que não tinha mais demónios por enfrentar. Mas eles estavam lá.
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