Dir-se-iam diametralmente opostas as
razões pelas quais se vem subestimando a dramática expressividade patente na
ação de Ralph Alessi e Fred Hersch. No caso do trompetista, ainda que lhe elogiando
as qualidades demonstradas sob a tutela de Steve Coleman, Ravi Coltrane, Don
Byron ou, com invulgar pendor sinóptico, Uri Caine, apontava-se, por exemplo, uma
vacilante singularidade artística, duvidando-se da sua capacidade em converter
numa prática pessoal tudo aquilo em que se tornava versado quando servia criações
de terceiros. Sem que se resumisse tal dispersão nestes termos – e o
reconstitutivo contexto, segundo parâmetros praticamente teatrais, em que nas
formações de Caine abordou Bach, Mahler, Mozart ou, já este ano, Gershwin,
daria alento a tal formulação – trazia à memória o ator cuja versatilidade se
vai frustrando pela reincidência no mesmo tipo de papel. Já em Hersch era a sua
progressiva insularidade que impressionava. Dissociado, solipso, com interesses
pouco canónicos, para não dizer anacrónicos, acumulava uma volumosa discografia
em nome próprio – a rondar as quatro dezenas de álbuns – num impulso algo parafrástico
face à literatura pianística no jazz. De modo perverso, pois assim se firmaram
as maiores reputações no género, era como se pelo ato de preconizar a
excelência interpretativa – relembrem-se as suas fascinantes leituras de Billy
Strayhorn, Rodgers & Hammerstein, Thelonious Monk ou Johnny Mandel –
estivesse a contrariar a edificação de um paradigma autoral, quando era o oposto
que se verificava. Na fase de mais intensa visibilidade e correspondente benesse
crítica de um e outro – no espírito do que, acerca de Jess Stacy, um dia
escreveu Whitney Balliett – produziam música que ia sendo recordada à medida
que estava a acontecer.
Em “Baida”, Alessi pretende indicar
que é hoje um compositor tão confiante quão seguro de si foi enquanto solista.
No entanto, declarações suas ao número de setembro do “The New York City Jazz Record” confirmam a perplexidade que advém da primeira audição do disco: “Tinha
algumas dúvidas antes da ida a estúdio. Honestamente, não sabia bem do que é
que o Manfred [Eicher, cofundador e diretor da ECM] iria gostar”. E, em relação
à estelar banda que reuniu – Jason Moran, Nasheet Waits e Drew Gress –
afirmava: “Como não tocamos juntos com frequência, sempre que o fazemos há uma
frescura, um sentimento de que estamos a começar de novo ainda que num registo
de uma certa continuidade”. O paradoxo é que o sucesso de temas como ‘Chuck
Barris’ ou ‘In-Flight Entertainment’ dependeria precisamente da unidade
concetual que apenas a atividade sustentada de um grupo, e a acreção que daí
resulta, consegue gerar. Ao invés, temos melodias convencionais idiossincraticamente
tocadas, orientadas no sentido contrário senão ao dos instintos dos
improvisadores pelo menos ao da natureza do material apresentado (compare-se
com “Cognitive Dissonance”, a gravação de 2004 deste quarteto na Cam Jazz). A
tendência para a abstração – estratégia comum na ECM mas que se revela mais
congenial à medida que se percorre o alinhamento – parece querer prevenir um
discurso marcado por generalidades, mas acaba por lhe reprimir o potencial
idiomático, atingido só nos perfeitamente estruturados ‘Sanity’ e ‘Maria Lydia’.
Já em “Only Many” nada tolda –
muito menos o receio de, a espaços, tornar aparente uma oratória doutrinal – a
energia criativa de Alessi. Amparada e comentada pela inquietude de Hersch, que
oscila entre a reverência classicista e o ímpio sentimentalismo, pressente-se
aqui uma lógica de recital, organizada de forma a fazer desfilar um conjunto de
estéticas nem sempre compatíveis. Constantemente inventivos, trompetista e
pianista – num programa de originais que encontra exceções em ‘San Francisco
Holiday’, de Monk, e ‘Blue Midnight’, de Motian – sugerem um quadro de inequívoco
mistério, feito de opulentas baladas e pontilhadas miniaturas atonais, matura decantação
do ensaiado em “The Fred Hersch Trio +2”, há dez anos. “Free Flying”, a pretexto
de uma colaboração com o prodigioso guitarrista Lage, serve, por sua vez, para revalidar
o valor da empatia. Contrariamente a “Songs We Know”, a parceria de Hersch com
Bill Frisell, de 1998, o ecletismo não origina, agora, mais-valia, destacando-se
a mestria gramatical na escrita (quase toda de Hersch) e as oblíquas relações
que se estabelecem entre os interlocutores. Longe do tropismo das vanguardas, o
triunfo de estilistas que, coagidos a definir-se, provavelmente diriam não ter
estilo algum.
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