Há exatamente uma semana, no canal de YouTube da Deutsche Grammophon, desde Belgais, ou, como ela dizia, “no meio do nada”,
Maria João Pires servia de anfitriã numa maratona de streaming de pouco menos de quatro horas aproveitando para falar
acerca desta “terrível crise que atravessamos”: avisava que era útil
refletirmos sobre o futuro, sobre como podemos “cuidar melhor de nós, do
planeta e uns dos outros”, “respeitando-nos mais, partilhando mais”. Depois,
pelo muito que temos a aprender com o seu exemplo, presume-se, explicava que
tinha decidido tocar Beethoven: um “homem de fé e de esperança, que sempre
lutou pela justiça com muita compaixão – uma alma pura.” E tocou o quê? Pois, a
“Sonata para Piano Nº 8”, vulgo Pathétique – seria cómico se não tivesse sido
tão comovente. Seguiu-se-lhe, por ordem de entrada em cena, e quase sempre a
partir das respetivas casas, Víkingur Ólafsson, Joep Beving, Rudolf Buchbinder,
Seong-Jin Cho, Jan Lisiecki, Kit Armstrong, Simon Ghraichy, Evgeny Kissin e Daniil
Trifonov, que, por sinal, tocou de luvas, o que não se via há coisa de 15 anos,
desde um recital de Jorge Lima Barreto. De certa forma, o mote tinha sido dado
por Philip Glass, citado por Ólafsson: “A música é um lugar tão real quanto outro
qualquer – e assim que souberem onde é esse lugar podem lá ir sempre que
quiserem”, lê-se nas suas memórias. Dito e feito: antes de Trifonov tocar a
última nota de “A Arte da Fuga”, o vídeo atingia já as 250.000 visualizações. Hoje,
e até terça, sempre às 5 da tarde, um desses lugares é a sala de estar do
violinista Daniel Hope, em Berlim, a partir da qual tem tocado todos os dias em
direto (as transmissões são no YouTube da DG e no site do canal Arte). Quem
também continua a tocar a partir da sua sala de estar em Berlim é Igor Levit
(através da sua conta no Twitter) e, em Nova Iorque, Fred Hersch (na sua página
de Facebook) – na semana passada, por fatalidade, tocaram ambos ‘And so it
Goes’, de Billy Joel, tema que começa assim: “In every heart there is a room/ A
sanctuary safe and strong”. Será a algo do género que remete um festival
virtual a decorrer diariamente, até terça, chamado Live from our Living Rooms –
entre outros, envolve gente como Chick Corea, Joe Lovano, Bill Frisell, John
Patitucci ou Dave Liebman. Como se não bastasse, hoje, pela noite dentro, Vijay
Iyer improvisa em direto a partir do auditório do Centro de Artes de Caramoor
(no canal de YouTube da instituição) e, terça, pouco antes da meia-noite,
Jeremy Denk [na foto] apresenta seleções de “O Cravo Bem Temperado”, de Bach, no site do
Greene Space, a sala da rádio pública nova-iorquina. Lugares e mais lugares,
pelo menos até ao dia em que façamos como aquela personagem de “O Quarto”, de
Herberto: “Fecho as portas da casa, a porta de saída e as portas dos quartos
entre si. E fico no quarto sem soalho e deito-me no chão. Ouço o mar e o vento
à frente e atrás da montanha solitária e poderosa. Depois encosto a cara à
terra profundíssima para escutar o seu húmido sussurro atravessando-a toda e
passando por mim.” Depois a música acaba.
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