Com “Folk Songs” (1964), Luciano Berio havia já
encostado o ouvido ao chão. E, entre muitas vozes mais, escutou o seu próprio
canto, claro, antes de se deixar possuir por esse seu palimpséstico delírio e de
se pôr a redigir por cima de escritos arménios, azerbaijanos, sicilianos ou
sardenhos até praticamente se perderem de vista os caracteres originais. Mais
tarde, em “Sinfonia” (1968), para preservar a integridade física de uma das
suas mais ameaçadas estruturas, ou, quiçá, para a fazer cair de vez, dedicou-se
à conservação e restauro do cânone ocidental, enxertando a prática
contemporânea com Bach e Berg, Brahms e Boulez ou Stravinsky e Stockhausen,
embora a sua ação lembrasse mais a de um perverso falsário que na reprodução de
uma obra de arte não resistisse a acrescentar elementos espúrios. Agora, em
meados da década de 70, desejava unir esses dois ciclos distintos: de pegar em
algo que parecesse ter começado com a criação do mundo, numa ponta, e em
qualquer coisa vinda de si, noutra, e de lhe dar um valente nó. Sabe-se que no
gira-discos tinha um LP com gravações de campo do etnomusicólogo Simha Arom e
que, no fundo, se sentia como se estivesse a reaprender contraponto com o povo
Banda, uma minoria da República Centro-Africana. E provavelmente tinha na
mesa-de-cabeceira uma antologia de Borges, daquelas em que os narradores crêem
“em infinitas séries de tempos” e “numa rede crescente e vertiginosa de tempos
divergentes, convergentes e paralelos”. Conforme veio a admitir, em entrevista,
tinha em mente uma espécie de assembleia, uma convocação das mais variadas
gentes, “cada qual com a sua própria história, com os seus diferentes amores e
com os seus lares destruídos.” De facto, nos anos de chumbo, assistia ao noticiário,
lia as manchetes e, entre golpes de Estado, conflitos armados, atentados e
ações de guerrilha, via-se rodeado por cadáveres. Não admira que a extravagante
algaraviada de “Coro” se assemelhe à que hoje rodeia o coronavírus: diversas fontes
a quererem falar numa voz unida, quando todo o ruído que produzem apenas serve para
sublinhar o muito que as separa. É essa a sua força. É essa a sua fraqueza.
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